BAIXADA CULTURAL
A NAU DOS INFELIZES
TRAGÉDIA A BORDO DE UM NAVIO
NEGREIRO BRASILEIRO
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, senhor Deus!
se é loucura... se é verdade
tanto horror perante os céus?!
Castro
Alves em “Navio Negreiro”
Na manhã do dia 6 de setembro de 1842, uma belonave
britânica de 26 canhões denominada H.M.S
.Cleópatra, adentrava a baia de Guanabara para uma escala de alguns dias
destinados ao abastecimento. Sua missão nessa viagem era transportar o
tenente-general sir William Gomm, que ia tomar posse como governador nas ilhas
Maurício.
Extasiado diante da imensidão da baia, o pastor
registrou em seu diário: “A magnificência incomparável da baia do Rio, apertada
na entrada, depois se abrindo em uma circunferência de dezessete léguas; suas
cem ilhas; as montanhas que a envolvem mostrando cada mudança de contorno,
coberta por uma riqueza de verdura do litoral até os cimos... misturando seus
cumes com as nuvens; tudo isso compõe uma variedade e beleza que dificilmente
cansa a vista. A cidade do lado esquerdo da entrada fica a quatro ou cinco
milhas de distância da entrada”.
Ao desembarcar em frente ao Hotel Pharoux, comenta o
grande movimento do cais, nos barcos que saíam ou chegavam levando e trazendo
passageiros e víveres dos navios ancorados ao largo. Contemplou uma praça na
qual observou uma grande profusão de frutas e verduras espalhadas pelo chão
apregoadas por escravos.
“Uma alegria
cordial se misturam ao redor de um pequeno fogareiro de carvão onde eles fritam
seus peixes ou cozinham sua raiz de mandioca e batata doce. O trabalho mais
pesado que se vê na rua é o do carregador de café que leva sacos pesados na
cabeça com seus passos acelerados, ao som de chaqualhantes substâncias dentro
de uma bexiga que o chefe do grupo sacode e os outros acompanham cantando”.
Critica com veemência o Brasil por sua condição de país
escravista, comentando que os casos de tortura e crueldade não eram divulgados
pelos jornais do Rio de Janeiro, apenas anunciando casos de negros fugidos de
uma jornada sobrecarregada de trabalho e subnutridos “dependendo dos caprichos
do mau humor ou da avareza de seu dono”. Assistiu a um leilão de “mais ou menos
vinte e cinco escravos de ambos os sexos, decentemente vestidos sentados em
bancos atrás de uma mesa comprida, onde um de cada vez subia para ser melhor
examinado pelos arrematadores. Um ar de obstinação parecia expressar seus
sentimentos de degradação por estarem sendo postos à venda.”
No dia 14 de setembro daquele ano o “Cleópatra”
levantou ferros singrando majestosamente em direção ao oceano Atlântico,
buscando o continente africano. Ao iniciar essa viajem o pastor Hill não
suspeitava que fosse testemunhar para a posteridade através de seu diário,
talvez o mais contundente registro que temos conhecimento das condições
degradantes de um navio brasileiro destinado ao transporte de escravos, após
ser aprisionado pelos ingleses. Num tom seco e direto, o pastor narra a ventura
desse barco “tumbeiro” denominado “Progresso”, que seguia para o Rio de
Janeiro.
O
APRISIONAMENTO
Deixando as ilhas Maurício, o ‘Cleópatra” dirigiu-se à
foz dos rios da região da costa de Moçambique, infestada de barcos negreiros.
“Um novo interesse aqui se ligava a cada nau que fosse vista. O mercado de
escravos na costa da África no presente momento, está quase confinado aos
distritos de Quelimane e Sofala, tendo cessado no Porto, graças aos zelosos
empenhos dos últimos e do presente governador”.
Ancorado fora da barra, no dia 23 de março de 1843 o
comandante mandou uma barca subir o rio em direção a cidade de Quelimane,
trazendo na volta uma carta do governador narrando que dois barcos brasileiros,
o “Desengano” e o “Confidência”, foram capturados pelo brigue “H. M. Lily”,
cuja tripulação composta de brasileiros e portugueses, apresentara-se a ele,
tendo sido devolvidos aos seus respectivos países.
No dia 31, uma embarcação de dois mastros foi avistada
ao longe “indo furtivamente ao longo da margem” tendo sido fracassada a
tentativa do Cleópatra em contatá-la, alguns escaleres foram enviados “para
vigiarem os pequenos rios ao longo da costa.”.
As obras de revitalização da área portuária do Rio revelaram o antigo cais do Valongo, onde desembarcavam os escravos vindos da Áfica.
Ao amanhecer do dia 12 de abril “ao voltarmos para
Quelimare, o vigia no alto do mastro principal percebeu a sotavento uma
embarcação que pela distância mal era visível; mas sua localização tendo sido
considerada muito suspeita, a ordem foi de dirigir-se para ela”. Um vento forte
seguido de chuva dificultava a perseguição à estranha embarcação. Após algum
tempo o sol voltou a brilhar revelando próximo um “bergantim de linhas
arrojadas como nós... desmastrado durante a ventania”. De repente o barco içou
as velas pôs-se em fuga desfraldando a bandeira brasileira, em resposta a
bandeira britânica que tremulada no mastro perseguidor. Posicionaram-se os
homens da tripulação em torno aos canhões e ouviu-se o primeiro tiro de advertência
em direção ao bergantim. Seguiu-se mais alguns outros, sendo ignorados pelo
perseguido até que, perdendo distância, arriou as velas e aguardou aproximação
de seu captor.
Um escaler conduziu um oficial para tomar posse do
navio, e substituir a bandeira brasileira pela bandeira britânica, pois
aparentemente não havia dúvidas quanto sua atividade de navio negreiro.
Seguiu-se o capitão acompanhado do narrador deste diário e “um cirurgião para
examinar o estado de saúde a bordo da presa”.
A visão do quadro degradante que o pastor viu, mesmo em
sua narrativa fria é horripilante. Negros nus e famintos se atropelavam no
convés do navio arrebentando barricas de farinha, “a raiz da mandioca em pó;
outros tendo quebrado os caixotes seguravam grandes pedaços de carne de porco e
de boi; e alguns pegaram aves das gaiolas e as devoravam cruas”. Panos torcidos
eram enfiados nos tonéis de aguardente, “um forte rum brasileiro do qual
beberam em excesso”. Os gritos ensurdecedores de alegria foram ouvidos depois
que toda a tripulação inglesa subiu a bordo para livrá-los das correntes de
ferro, as quais muitos deles ainda estavam presos.
Após a tripulação de dezessete homens ser transferida
para o barco inglês composto de três espanhóis e o restante de portugueses e
brasileiros, foi avaliado a situação: tratava-se do navio brasileiro “Progresso”,
deslocando cerca de 140 toneladas procedente de Paranaguá e seguia em direção
ao Rio de Janeiro. Sua carga era composta de 447 negros. “Desses 189 eram
homens, poucos, no entanto, passando dos vinte anos; 45 mulheres e 213
meninos”. Havia um grande número de doentes a bordo, suspeitando-se que a
princípio fosse de 25, mais tarde descobriu-se uma quantidade maior.
Segundo a tripulação o comandante havia perecido
afogado no porto de embarque. Tempos depois se descobriu que ele permaneceu
escondido entre seus subordinados para fugir ao rigor das leis inglesas. Dois
espanhóis e um português voltaram para o barco “Progresso” com a tarefa de
cozinharem para os negros, juntamente com nove marinheiros, um tenente, um
mestre quarteleiro, um contramestre e o pastor Hill, autor do diário do qual
estamos seguindo seu roteiro.
A VOLTA PARA A ÁFRICA
Ao longo do tombadilho o pastor descreve os negros
recentemente libertados, dormindo, enquanto a nave desliza suavemente à brisa
do mar calmo. Corpos esqueléticos, uns sobre os outros, disputam o pequeno
espaço. De repente, “o céu começou a se encher de nuvens e um nevoeiro
espalhou-se pelo horizonte para barlavento”.
Os fortes ventos seguidos de chuva provocaram as cenas
de horror que se seguiram, com os marinheiros querendo chegar até as cordas
para recolher as velas, e a pisotearem os negros que se alvoroçaram aos gritos
acompanhados da ordem de mandar todos descer para o porão. Durante a noite, o
calor sufocante agitou “quatrocentos infelizes seres humanos apertados em um
porão com doze jardas de comprimento... rapidamente começaram a fazer um
esforço para voltar ao ar livre” através das escotilhas fechadas em cima deles.
“A única passagem de ar, o calor sufocante do porão, e,
talvez o pânico da situação inusitada fez com eles pressionassem... se
acumularam nas grades, e agarravam-se a ela lutando por ar. Mas com isso
barravam completamente a sua entrada. Posso afirmar sem exagero que os gritos,
o calor “a fumaça do tormento deles” que subia não pode ser comparadas a nada
desse mundo. Um dos espanhóis avisou-se que a conseqüência disso seria de
muitas mortes.
Pela manhã, cinqüenta e quatro corpos de homens, mulheres
e crianças foram conduzidos para o tombadilho e jogados ao mar. “Era uma cena
horrorosa vê-los passar um a um, os membros enrijecidos cobertos de sangue e de
sujeira” Outros estavam feridos ou fracos demais para se erguer. Haviam sidos
pisoteados. “Alguns ainda tremendo foram deitados no tombadilho para morrer,
água salgada eram jogada sobre eles para revivê-los, e um pouco de água
entornada em suas bocas”.
A refeição daquele dia consistia de farinha e água,
“quase metade de meio litro que eles agarravam com inconcebível avidez... suas
gargantas deviam estar ressecadas pelos choros e gritos que vararam a noite
adentro”.
Na véspera de Páscoa, o pastor parece desabafar diante
de tanta degradação: “O mundo não consegue apresentar um espetáculo mais chocante
da desgraça humana do que esse nosso navio apresenta. Parece que uma cena tão
angustiante possa ser testemunhada sem causar um efeito prejudicial no
espectador”. Depois familiarizando-se, ele vai em certo grau insensibilizando
seus sentimentos.
Dia de Páscoa, domingo, 16 de abril. Avistou-se o
“Cleópatra” com sinais de que queria se comunicar, sendo feito a aproximação.
Receberam “um velho português chamado Valerian, para ajudar a reparar nossas
velas que eram velhas e fracas”, e um cirurgião assistente “que começou a
examinar os doentes. A maioria dos casos era de disenteria e de ferimentos
ulcerados. Um homem tinha uma profunda escara infeccionada causadas por
chicotadas. Uma pobre criança de seis ou sete anos perdeu quase todo o dedo
grande do pé comido por “niguas”, ou seja, bicho de pé”.
Na manhã de segunda feira, os meninos que anteriormente
haviam sidos rejeitados à bordo do “Cleópatra” por suspeitas de varíola,
finalmente foram aceitos cerca de cinqüenta, pois se tratava de “violenta
espécie de coceira”. Acompanhados de víveres para alimentá-los, consistindo de
“dois sacos de arroz, um de milho moído, uma boa quantidade de carne-seca...
que só desse último artigo o “Progresso” carregava um estoque suficiente para
alimentar os negros durante dois meses”, além de seiscentos sacos de feijão
miúdo, guardado abaixo do tombadilho dos escravos, arroz inferior, farinha, e
“22 enormes tonéis, cada uma comportando cinco ou seis barricas cada”.
Referindo-se ao depósito de provisões o pastor
registra: “armários trancados cheios de cerveja comum e de cerveja preta forte;
barris de vinho; licores de várias espécies; macarrão; vermiceli; tapioca da
melhor qualidade; caixas de picles ingleses, cada uma contendo doze vidros;
caixas de charutos; uva moscatel; tâmaras, amêndoas, nozes etc.etc. Os viveiros
no tombadilho estão cheios de aves e patos e tem onze porcos”.
O “Cleópatra” afastou-se rapidamente dando o último
adeus de despedida. Durante a jornada o espanhol que fazia parte da tripulação
anterior em atividade no navio brasileiro “Progresso”, revelou ao pastor dados
interessantes de sua vil profissão. Narrou que durante os “dois ou três meses”,
em que ficaram à espera do embarque da carga humana na praia, os negros ficaram
muito doentes, “Alguns deles tinham vindos de longe no interior e chegaram em
condições deploráveis e cinqüenta foram rejeitados como incapacitados para
viajar”. Curiosa a resposta do tripulante quando perguntado se acreditava no
fim do tráfego de escravos, que cada vez mais era combatido pelas nações que
assinaram um pacto para esse fim, “ele achava que no Brasil, onde havia grandes
enseadas isoladas que facilitavam o contrabando, haveria uma grande dificuldade
em suprimir o tráfego, embora se a autoridade do governo simpatizasse com a
causa poderia fazer muito”.
Rugendas retratou o mercado de escravos no centro do Rio
O “Progresso” havia sido o quarto navio apreendido
naquele ano. “Em Quelimane, oito ou nove navios pegam sua carga anualmente”
continua o espanhol “e, calculando por baixo, com quinhentos escravos em cada
um... agora nenhum escapa, é um trabalho para homens desesperados... Na costa
leste os negros geralmente são pagos em dinheiro, às vezes em “fazendas”,
algodão grosseiro a um custo mais ou menos de dezoito dólares por homem e doze
por meninos. No Rio de Janeiro, seu valor estimativo é de 500 mil réis por
homens, 400 mil réis por mulheres e 400 mil réis por meninos. Assim sendo uma
carga de quinhentos escravos, a um preço vil, o lucro vai passar de 19.000 libras ”.
Uma manhã um negro morreu e foi jogado ao mar. Seu
corpo flutuou em torno do navio batendo contra o casco “de barriga para cima
durante meia hora”. A tripulação ficou temerosa que algum tubarão pudesse
alcançá-lo. Finalmente o cadáver se afastou para todo o sempre. O maior
sofrimento dos negros era a sede. Com a água racionada eles sorviam as gotas de
chuva que pingavam das velas. “Colam seus lábios nos mastros molhados e
engatinham até as gaiolas das aves para compartilhar os alimentos”. Na hora da
refeição, constando de feijão cozido com arroz, a comida era distribuída em
tinas “ao redor das quais eles estão sentados em grupo de dez, e, a um sinal,
começam a mergulhar suas mãos na mistura e com grande habilidade levam o
conteúdo até suas bocas”.
.Um tubarão de grande tamanho foi pescado pela guarnição
e serviu de refeição para os negros que se arregalaram com alegria durante a
refeição. Porém, antes de abrir o peixe, ficaram temerosos “de encontrar restos
dos nossos camaradas falecidos”.
Uma febre estranha atacou seis homens da guarnição, inclusive
o pastor. Manoel, o cozinheiro português, foi o primeiro acamar-se com
delírios. “Nessas febres da costa da África é necessário não ficar acovardado;
por que se alguém se acovarda, em quatro dias morre”. E foi o que aconteceu com
Manoel. “O corpo foi costurado dentro de um saco, com um chumbo para fazê-lo
afundar, depois foi trazido para a popa, onde os ingleses e os espanhóis
esperavam, eu li o modelo de Serviço Fúnebre para ser usado no mar: “Entrego
seu corpo com honras no mar, esperando pela sua ressurreição, quando o mar
deverá entregar seus mortos e a vida do mundo ocorrer”.
No final de abril durante uma noite, todos acordaram
com gritos ouvidos no convés dos escravos. Ao verificar o motivo, denunciaram:
“estão roubando água”. Confirmada a denúncia, foram responsabilizados sete
elementos como autores do furto. “O mal resultante dessa delinqüência não é só
da água retirada e sim a sujeira que fica dos trapos que eles mergulham nos
barris para tirar o líquido”. Pela manhã os acusados foram amarrados no convés
“e cada um recebeu de quinze a vinte chibatadas: um espanhol, um inglês e um
negro forte se revezavam na tarefa”.
Após vários dias de calmaria o “Progresso” velejava
sereno, acompanhado de cardumes de toninhas com os marinheiros tentando arpoá-las.
Em poucos momentos o céu encheu-se de
nuvens carregadas com os relâmpagos rasgando o horizonte, sinalizando o
recolhimento das velas. Trovões rolaram acompanhando o vento e as ondas que
varriam o convés. Os gritos dos negros recolhidos apressadamente ao porão, o
ranger de cordas e do tabuado faziam crer que o navio estava prestes a se
partir.
Ao se iniciar o mês de maio, o navio seguia sua rota em
calmaria entrando num novo hemisfério. A estação fria se aproximava mantendo os
negros aninhados no porão. “Os negros nus já estavam começando a tremer e a
bater os dentes”, que aumentava a medida que o navio avançava para o norte. As
noites eram geladas e em uma manhã “sete negros foram encontrados mortos e
entre eles uma menina”. A morte estendia suas asas com mais calamidade sobre
esses infelizes.
Em seu diário o pastor registra as cicatrizes de letras
marcadas no peito e nos ombros dos negros, que segundo um português da
guarnição, é para marcar as iniciais de seus respectivos donos. “Quando o navio
chega ao Rio eles podem reconhecer suas propriedades” acrescentando que “a
condição do negro é muito pior no Rio onde eles andam esfarrapados e
maltratados “como um escravo” do que em Havana, onde às vezes está mais bem
vestido do que muito branco”.
Nova tempestade colheu o “Progresso” com “vento
violento acompanhado de chuva” ceifando mais vidas de negros recolhidos ao
porão. Pela manhã: “três mortos foram as primeiras coisa que meus olhos viram
no convés; um homem coberto por um cabo de corda, uma coisa horrível e
repugnante; o pobre menino que sofria com bicho-de-pé e que agüentou seu
sofrimento com muita paciência e uma menina, cujos dois olhos ontem estavam
completamente fechados por causa de uma inflamação na cabeça. Suas vidas foram
durante um tempo, uma carga pesada para eles e não poderiam se mais
prolongadas, mas com certeza foram encurtadas pela inclemência do tempo”.
As tempestades se sucediam com freqüência. Ao entrarem
nas zonas de turbulências com nuvens ameaçadoras, antecipava-se o recolhimento
das velas e os negros eram recolhidos ao porão. “Rajadas se sucediam umas às
outras misturando mar e ar em um lençol pulverizador, cegando os olhos do
timoneiro. Ondas subindo altas, acima de nós, jogando para o céu as espumas de
suas cristas e ameaçando engolir o navio a qualquer momento”. Cavalgando sobre
as vagas e rangendo o madeirame, o velho brigue transportava em seu interior
“os gritos agudos dos doentes através da escuridão da noite, subindo acima do
barulho dos ventos e das ondas, pareciam as coisa mais tristes de todos os
horrores desse infeliz navio”.
Ao amanhecer a mesma rotina trágica: três corpos jaziam
no convés para serem lançados no mar: “o de um homem e os de dois meninos,
trazidos do porão para o convés”. O homem havia sido surrado por seus
companheiros alguns dias antes, e naturalmente não agüentou a falta de ar no
porão na noite anterior. Dentre as doenças dos negros que se manifestavam à
bordo, “os casos de feridas ulceradas assumiam uma aparência tão horrível que
eu agora mal consigo olhar. Esses pobres pacientes, também estão sem exceção,
atacados de disenteria, da qual eles têm certeza que vão morrer mesmo se
curados das feridas”. O estado de desnutrição era cada vez era evidente na
aparência dos negros transportados pelo “Progresso”. “Um menino que estava a um
estado que não se consegue conceber em um ser humano”, durante a administração
de um remédio composto de camomila,
“Antonio o fez sentar para beber, quando sua cabeça caiu para frente e morreu
nessa posição”.
Navegando numa região de calmaria, um horrível mau
cheiro passou a exalar do porão impregnando todo o navio. A mistura das fezes e
do suor dos negros doentes e esqueléticos que não podiam se locomover para o
convés e permaneciam asfixiados num calor sufocante, faziam com que a
tripulação se sentisse incomodada, “e na nossa cabine na popa é quase
intolerável”.
“Aparentemente nada se movia nem no ar nem no mar nem
no céu, exceto os enormes albatrozes, com suas azas de dezesseis pés bem abertas,
dando volta uma atrás da outra e, às vezes passando tão perto, que quase tocam
a grinalda da popa na qual eu estava sentado”.
Ao entardecer sombras foram vistas no horizonte
denunciando terras, confirmada ao amanhecer com o aparecimento dos pombos do
Cabo, em conjunto com os albatrozes e várias velas que surgiam ao longe,
suspeitando que fosse a “baia Plettemberg, entre a baia de Algoa e o Cabo,
alguns negros apontam interessados e curiosos para lá, mas um grande número
deles senta-se junto no convés, com suas cabeças descansando nos joelhos
aparentemente em uma apatia total para tudo ao redor”.
A morte ceifaria naquela manhã mais três meninos. Seus
corpos estendidos no convés era parte da rotina diária, “embora, durante os
últimos sete dias os casos fatais tenham atingido uma média de quatro por dia”.
No dia 1º. de junho, o “Progresso” se aproximava da
costa quando foram transportados do porão mais oito corpos, “e agora não
podemos mais nos aventurar a joga-los ao mar como antes, porque as ondas podem leva-los
para alguma praia desabitada da baia na qual entramos ontem à noite”. Na baia
de São Simão, o nevoeiro desfeito deixou ver dezenas de mastros e velas de
barcos que se confundiam ancorados ao largo.
Aproximando-se do cais, o navio lançou ferros, sendo
logo visitado pelo fiscal sanitário. Em seguida o superintendente do Hospital
Naval, também foi a bordo conduzido pelo pastor, já que eram velhos conhecidos,
visitou o porão destinado aos escravos. “Por mais que ele estivesse acostumado
a cenas de sofrimento, ele foi incapaz de suportar a vista, superando tudo o
que ele podia conceber de miséria humana. Uma menina pequena chorava
amargamente, presa entre as tábuas e lutando para libertar seus membros
enfraquecidos, até que lhe deram assistência”.
As escavações para as obras na área portuária revelou o antigo cais do Valongo, que recebia os escravos vindos da África
Desembarcando no cais e após um descanso, o reverendo
dirigiu-se abordo do “Isis” para
cumprimentar um velho conhecido: sir John Marchal. De volta para a terra
resolveu fazer a última visita ao “Progresso”, onde encontrou mais seis corpos
empilhados no convés junto aos oito do dia anterior esperando para serem
enterrados na praia. Os mais saudáveis já tinham sido embarcados em vagões para
a cidade do Cabo. Cada um dos que era liberado, diz o pastor em seu diário:
“recebia um casaco novo e quente, calças, e eram colocados agasalhados em
confortáveis vagões abertos... passei pelos negros e não os encontrei mais
conformados com a mudança da situação... Cada mulher tinha um cobertor branco
novo, além de roupas... responderam aos seus nomes, mas mostraram poucos sinais
de alegria na ocasião. Dúvida e medo predominavam e seus semblantes pareciam
aqueles das vítimas condenadas”.
Durante a limpeza do navio foi encontrado um menino
preso nas taboas do porão em adiantado estado de putrefação. “Parte de uma das
mãos tinha sido devoradas e um olho completamente roídos pelos ratos... os
doentes que desembarcaram ainda são numerosos”.
Após cinqüenta dias da viajem de volta ao continente
africano, chegava ao fim um dos mais dramáticos depoimentos de fatos
abomináveis que envergonham as relações humanas. O “Progresso”, navio
brasileiro apreendido pela bandeira britânica com sua carga infame de 397
negros destinados ao Rio de Janeiro, chegava ao porto próximo à cidade do Cabo
com 223 sobreviventes, reduzidos em 175 homens, mulheres e crianças que
pereceram em condições degradantes.
POSFÁCIO
Percorrendo o
Rio de Janeiro durante a primeira metade do século XIX, o viajante inglês GT.
W. Freireyss registrou uma visita feita ao mercado do Valongo: “Basta entrar
numa das espaçosas salas de um traficante na Capital, para ver uma porção de
negros recém-chegados divertirem-se à moda do seu país, o que o traficante lhes
permite por que sabe que a falta de movimento e a nostalgia lhes diminuem o
infame lucro. Encontramos aí alguns centos de negros nus e rapados, diversos
tantos na idade como no sexo, que formavam uma grande roda, batendo palmas com
toda a força, acompanhadas com os pés e com um canto gritado e de três notas
apenas”.
Após as primeiras visões desta degradação humana,
Freireyss assinala que os navios chegavam com a quarta parte de sua carga
doente, “enquanto outros que trazem consigo o gérmen da moléstia, sucumbem
poucos dias depois da chegada”.
Muito já se escreveu sobre a história social do Brasil
desde o processo colonial. O tráfico negreiro é um desses temas que enodoam seu
relato, iniciando com o aprisionamento de uma população ordeira do interior do
continente africano por tribos litorâneas e negociando seus irmãos com
traficantes de nações européias. Famílias inteiras transformadas em escravos
contribuíram durante mais de três séculos para o esplendor econômico dos
impérios coloniais incluindo o britânico, que se travestiu de inquisidor do
tráfego negreiro no século XIX por interesses econômicos.
Escrevi esse relato resumindo o texto do livro:
“Cinqüenta Dias a Bordo de um Navio
Negreiro”, transcrito do diário de bordo do reverendo Pascoe Grenfell Hill,
garimpado no raríssimo acervo do bibliógrafo e acadêmico José Mindlin,
traduzido por Marisa Murray e publicado recentemente pela José Olímpio Editora, na coleção Baú de
Histórias.
Guilherme Peres
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