Crônicas de conteúdo histórico-cultural sobre artistas, personalidades, políticos e acontecimentos em Duque de Caxias, RJ, projeto concebido pelos jornalistas Alberto Marques e Josué Cardoso.

quinta-feira, novembro 20, 2008

JOÃO CÂNDIDO – O HERÓI
DOS DIREITOS HUMANOS

GUILHERME PERES

Filho de João Cândido Velho e Dona Inácia Cândido, João Cândido Felisberto, o líder da Revolta da Chibata na Marinha, nasceu em 1880 na fazenda da Coxilha Bonita, município de Rio Pardo, Rio Grande do Sul. Na adolescência ocupou pequenos empregos na cidade de Porto Alegre, até inscrever-se aos 16 anos na Escola de Aprendizes de Marinheiro de seu Estado. Pouco depois foi enviado para o Rio de Janeiro onde assentou praça de grumete na Base Naval da Ilha de Villegagnon.
Durante os tempos que se seguiram, João Cândido, então com 26 anos, serviu a bordo de alguns cruzadores, mas sua maior missão foi embarcar com uma turma de marinheiros que viajaram para a Inglaterra, para acompanhar a construção final do maior vaso de guerra já construído nos estaleiro de New Castle encomendado pelo Brasil, o encouraçado “Minas Gerais”.
Incorporado à Marinha de Guerra em 1910 sob o comando do Capitão-de-Mar-e-Guerra Baptista das Neves, fez-se ao mar com toda a tripulação, dando entrada no Rio de Janeiro em abril do mesmo ano.
CASTIGO
Na baia de Guanabara, o sol dourava o mar naquela manhã de 16 de novembro de 1910. Vários barcos à vela e a vapor balançavam ao sabor das ondas serenas que chegavam à praia.
Ancoradas mais distante, duas belonaves: os encouraçados “São Paulo” e o “Minas Gerais”. Este, considerado na época, a mais potente arma de guerra no mar então existente, adquirida recentemente pela Marinha Brasileira aos estaleiros da Inglaterra. Nem mesmo as armadas do Japão, Itália, Rússia e França contavam com esse poderoso armamento.
No convés do “Minas Gerais”, a marujada perfilada com o uniforme de cerimônia diante da chegada de seu comandante João Baptista das Neves, acompanhado por oficiais fardados portando luvas e espadas.
Fez-se silêncio. Ao rufar dos tambores e ao toque breve dos clarins, leu-se o capítulo das penalidades contido na “Companhia Correcional” que permitia, após 22 anos da abolição, o açoite de marinheiros.
Marcelino Rodrigues de Menezes, marinheiro, havia sido condenado pelo “crime” de tentar entrar no navio com duas garrafas de aguardente. Denunciado pelo cabo Valdemar Rodrigues de Souza, tentou agredi-lo com uma navalha.
Após a leitura, o comandante fez um discurso ressaltando o dever da disciplina que cada marinheiro subalterno deveria cumprir. No castigo agora presenciado por toda a tripulação formada, Marcelino receberia 250 chibatadas, vítima do rancor de uma elite, cuja maioria de oficiais era filhos de fazendeiros ex-donos de escravos, que após a abolição, ainda mantinham o distanciamento social geridos nas senzalas, durante os tempos do Império.
Examinado pelo médico, o indiciado teve suas mãos amarradas, as costas desnudas e, após um sinal do comandante, o carrasco rodopiou no ar a primeira chicotada.
Um marinheiro negro perfilado no convés, chamado João Cândido, franziu o cenho sentindo a dor do companheiro sacrificado. Seus olhos acompanharam o suave vôo de uma gaivota riscando o céu em direção ao horizonte, num prenúncio de liberdade. O amanhã nunca mais seria o mesmo.
“Em 1910, as condições de vida e de trabalho dos marinheiros eram degradantes. Alistar-se na marinha de guerra era um castigo. Os vencimentos eram péssimos. A comida era ruim. Era comum que carne deteriorada fosse servida como refeição. O trabalho era pesado. Para manter uma disciplina despótica, os oficiais utilizavam habitualmente o castigo físico. Compreende-se por que motivo os voluntários fossem raros”
Considerado como rotineiro durante o período da escravidão, esses castigos haviam sidos abolidos após o advento da república em 1889, e retornado a rotina disciplinar na Marinha devido ao desejo da alta oficialidade, criando um novo decreto em 12 de abril de 1890, chamado de “Companhia Correcional”, qual levava a assinatura de Rui Barbosa. “Segundo o regimento, a pena máxima física era de 25 chicotadas por dia. Porém, castigos maiores eram deixados ao “prudente arbítrio do comandante”, sendo comum os golpes acima de duzentas chicotadas.
Com 90% da tripulação composta de negros e mulatos entre os marinheiros, a Marinha de Guerra era uma das últimas opções de trabalho para as classes pobres, “diante de uma oficialidade branca e aristocrática, descendentes em boa parte dos antigos senhores de escravos. O povo negro era, ontem como hoje, o grupo social mais marginalizado do Brasil”.
O LEVANTE
No mesmo dia a bordo do “Minas Gerais”, ficou praticamente acertada o inicio da revolta, que já estava sendo planejada meses antes, mas, o caso Marcelino, precipitou tudo; seria no dia 22 de novembro.
Às 22 horas, os toques de clarim naquela noite, ordenando silencio repetidos da proa à popa, significava combate. Um grupo de cinco marinheiros resguardou cada canhão, com ordem de atirar para matar.
Gritando vivas à “liberdade” e “Abaixo a chibata”, os marinheiros cercaram os oficiais em luta corporal com estes, até o domínio dos revoltosos. “As dez para as onze da noite, quando cessa a luta, João Cândido, líder absoluto da revolta, manda disparar um tiro de canhão, sinal combinado para dar o alerta aos outros navios envolvidos”. Responde o “São Paulo”, seguido do “Bahia” e o “Deodoro”. Todos os holofotes iluminam o Arsenal de Marinha, as praias e as fortalezas. “Um rádio é expedido para o palácio do Catete, exigindo o fim dos castigos corporais”.
No outro dia, os mortos são enviados para a terra enquanto a bordo inicia-se a rotina de guerra. No Rio de Janeiro, ao tomar conhecimento da situação, a população apavorada procura refugiar-se nos subúrbios, enquanto os navios sob o comando de João Cândido se deslocam na Baia de Guanabara “tudo feito com maestria”, como noticiou um jornal da época.
Diante da inoperância do governo, o deputado federal pelo Rio Grande do Sul e comandante da Marinha, José Carlos Carvalho, é convidado para dialogar com os revoltosos. Ao desembarcar no navio, com todas as honras destinadas às autoridades, perguntou: “quem é responsável por esses atos? “todos”, respondem. E um deles acrescenta: “Navios poderosos como esses, não podem, ser tratados, nem conservados, por meia dúzia de marinheiros que estão a bordo; o trabalho é redobrado, a alimentação é péssima e mal feita e os castigos aumentam a cada dia”. Mandam vir à presença do deputado o marinheiro castigado na véspera. “Esse pobre homem mais parece uma tainha lanhada para ser salgada”, diz o deputado, e pede que o ferido volte com ele para terra, a fim de tratá-lo no Hospital da Marinha.
Ao entregar a mensagem dos amotinados no Palácio do Catete, ao presidente e seus ministros, datada de 22 de novembro, que exigia “retirar os oficiais incompetentes e indignos de servir a Nação Brasileira. Reformar o código imoral e vergonhoso que nos rege, a fim que desapareça a chibata, o bolo e outros castigos semelhantes” entre outras reivindicações, concluía: “Tem V. Excia. o prazo de 12 horas para mandar-nos a resposta satisfatória, sob pena de ver a pátria aniquilada”.
O comando geral da revolta estava a cargo de dois líderes: Francisco Dias Martins, o “Mão Negra”, o intelectual que redigia as mensagens transmitidas em notas pelo rádio e captadas pelos marujos rebeldes, e João Candido, “O Almirante Negro”, como passou a ser chamado pela imprensa. Homem prático: “Executava sua liderança com firmeza e habilidade na condução da esquadra, graças às lições tomadas na Inglaterra”. Diferenciava dos demais marujos, por “um lenço vermelho que levava amarrado ao pescoço”.
“ANISTIA”
No Senado Federal, Rui Barbosa apresenta um projeto concedendo “anistia aos insurretos da parte de navios da Armada Nacional”. Entretanto, um plano cruel estava em andamento. Depois da liberdade, foram presos, sendo quase todos eles mortos na Ilha das Cobras, asfixiados durante vários dias em cubículos fechados após receberem uma ducha de água com cal virgem. Dos 18 encarcerados, apenas João Cândido e João Avelino sobreviveram.
Em uma entrevista João Candido revela: “os gemidos foram diminuindo, até que caiu o silencio dentro daquele inferno, onde o Governo federal, em que confiamos cegamente, jogou 18 brasileiros com seus direitos políticos garantidos pela Constituição”.
Expulso da Marinha com apenas 32 anos de idade, a tuberculose minava-lhe o corpo após 18 meses de prisão, passando a freqüentar a Praça XV em busca de emprego, tentando trabalhar em algum navio cargueiro que fazia a costa brasileira.
Operou no “Antonico” como timoneiro, fazendo carregamento de açúcar para o Sul com mais 14 tripulantes. Na volta ao Rio de Janeiro casou-se com a jovem Marieta, uma das filhas do carpinteiro que lhe deu hospedagem em sua casa.
Após um ano embarcado, foi demitido por pressão do comandante dos Portos de Santa Catarina e ex-oficial do “Minas Gerais” Ascânio Montes. Outro longo período desempregado até que aceitou descarregar café no cargueiro “Ramona”, porém, com a saúde abalada não agüentou o trabalho pesado.
Em 1917 falece sua primeira mulher. Três anos depois conhece Maria Dolores e vêm morar em São João de Meriti. João Candido é agora empregado na descarga de peixe no mercado da Praça XV. Aqui nasceram quatro filhos. Após oito anos de luta pela sobrevivência, a ausência do marido nas noites de trabalho, faz com que Maria Dolores num gesto tresloucado de ciúmes, pusesse fim à vida.
Não tem fim o sofrimento do velho marinheiro. Em 1930 é preso “por ter sido procurado por lideranças políticas, sobretudo de esquerda, que vêem nele um símbolo de resistência”. Naquele momento político conturbado na vida da Nação, achavam que João Candido estava envolvido em um partido de esquerda, representado pelo jornal “A Nação”, que incitava os deputados a formarem o bloco Operário e Camponês. que proclamava a criaçerda rado
ANOS TRINTA
No começo dessa década, João Candido conheceu Ana Nascimento, natural de Paraíba do Sul e resolveram morar juntos, mudando-se para outra casa em São João de Meriti, no bairro Vila Rosaly. Ali teve alguma tranqüilidade apesar da febre que o envolvia nas madrugadas frias de trabalho no mercado de peixe da Praça XV.
VILA ROSALY
Casado com Dona Rosaly de Araújo Farrula, o Dr. Rubens Campos Farrula comprou em 1928, parte das terras da antiga fazenda do Carrapato, pertencente ao espólio da família do comendador Tavares Guerra, transformando-a em área de loteamento com o nome de Vila Rosaly e conseguindo com sua influencia, desviar a Estrada de Ferro Rio D’Ouro de seu leito original para que passasse dentro de sua propriedade.
O artista plástico Moacir Campos, membro da Academia de Letras e Artes de São João de Meriti, em depoimento a este cronista, declarou que ainda criança, foi um dos primeiros habitantes desse loteamento junto com seu avô, o administrador Sr. José de Oliveira Campos, testemunhando durante vários anos a presença de João Cândido assistindo as partidas domingueiras no campo de futebol do Brasil Novo F.C., cuja residência ficava atrás dessa quadra de esporte, voltada para a ante anha ferrea o irao Brasil Novo.Av. Fluminense.
DECEPÇÕES
Na sua ingenuidade, é envolvido por integrantes da Marinha, filia-se à Ação Integralista Brasileira, freqüentando periodicamente o núcleo criado na Pavuna. Uma tentativa de golpe dessa facção é abortada pelo presidente Getulio Vargas em maio de 1938 e Plínio Salgado, seu líder, foge para a Europa deixando seus seguidores à mercê das tropas da Polícia Política. Mais uma decepção na vida de João Cândido que atravessou incólume esse revés.
Em 1961, viajou para o Rio Grande do Sul de avião para receber uma homenagem da Câmara Municipal de Porto Alegre, “seria também recebido no Palácio Piratini pelo governador Leonel Brizola e ganharia um busto em praça pública”.
Pressionados por oficiais da Marinha as homenagens são canceladas e a audiência com o governador é suspensa. Em Rio Pardo, terra natal de João Cândido a recepção ao homenageado pela Câmara tem o mesmo destino, valendo apenas a aprovação de uma pequena pensão de oito mil cruzeiros recebidos mensalmente no Rio de Janeiro através do Banco da Província do Rio Grande do Sul.
Varias tentativas de conceder-lhe uma pensão através de projetos apresentados à Câmara Federal foram barradas pela Comissão de Justiça. Enquanto isso, os jornais divulgavam freqüentemente o mau estado de saúde do velho marinheiro. O Governador do Rio de Janeiro Roberto Silveira, sensibilizado com sua situação, recebe-o no Palácio do Ingá e põe à sua disposição “um cheque de 200 mil cruzeiros da verba de representação pessoal do gabinete, para construir uma casa própria”.
“Candinho, o filho de João Candido, havia comprado um terreno na periferia de São João de Meriti, na Rua Turmalina, lote 18, quadra 50, em Coelho da Rocha. Ali João Cândido vive seus últimos anos, numa casa própria, construída sobre um barranco, numa rua sem asfalto, empoeirada”, diz Fernando Granato em “O Negro da Chibata”.
Aos 84 anos, é envolvido mais uma vez com os movimentos sindicais, sendo levado para a sede do Sindicato dos Metalúrgicos na célebre rebelião dos marinheiros como um troféu, numa tentativa de valorizar a liderança do cabo Ancelmo, que culminaria com o golpe militar de 1964.
Durante os “anos de chumbo”, o herói dos direitos humanos, “já quase sem enxergar, procura ficar incógnito em sua casinha da Rua Turmalina. Sai de casa apenas para fazer compras. Usando uma bengala vai a pé até o centro do subúrbio onde compra mantimentos num pequeno armazém”.

DEPOIMENTO
Em 1968 João Cândido é conduzido secretamente ao Museu da Imagem e do Som para dar uma entrevista com sua voz fraca e claudicante:
“Nós, que viemos da Europa” diz João Cândido em seu depoimento, “em contato com outras marinhas, não podíamos mais admitir que na Marinha do Brasil ainda um homem tirasse a camisa para ser chibatado por outro homem. Nós queríamos combater os maus-tratos, a má alimentação na Marinha. E acabar definitivamente com a chibata, o causo era só esse”.
“Muitos oficiais da Marinha não conseguiam comandar o “Minas Gerais” e eu tive o poder de dominar, fazer o que jamais fariam, na Baia do Rio de Janeiro. Quando recebi o ofício dizendo que a esquadra seria atacada pelo Governo, não dei resposta. Preparei meus navios e me fiz ao mar... esperei 24 horas, não apareceu ninguém”.
Depois desse episódio, tornara-se um símbolo de contestação. “E o que se percebe em suas palavras, é que João Cândido foi muito mais utilizado nas mãos de oportunistas políticos, do que motivado por ideologia própria”, diz Granato.
O ato de ter realizado uma manobra de guerra com uma esquadra, a bordo de um encouraçado com aquele poder de fogo, comandada por um marinheiro negro e subalterno, nunca seria aceito pela Marinha como protesto para terminar a tortura, e sim como uma manifestação de rebeldia.
“Depois que saí da cadeia, ainda tentei trabalhar no mar, mas fui sempre muito perseguido, até na Marinha Mercante”, finaliza João Candido.
DESCANSO ETERNO
O tempo chuvoso antecipou a chegada da noite naquela tarde de seis de dezembro de 1969. Ao ser levado ao Hospital Getúlio Vargas sentindo fortes dores no abdômen, João Candido foi desenganado pelos médicos devido ao câncer em adiantado estado de desenvolvimento, falecendo poucas horas depois.
Liberado o corpo no outro dia, “o pequeno cortejo com a família, num táxi, ruma para o cemitério do Caju”, onde foi sepultado na quadra 45 com a solidariedade de quatro conselheiros da ABI e “a presença de policiais com máquinas fotográficas. Na porta do cemitério uma radiopatrulha permaneceu estacionada”.

“O MESTRE SALA DOS MARES”
Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo feiticeiro
A quem a história não esqueceu

Conhecido como navegante negro
Tinha a dignidade de um mestre sala
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Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história
Não esquecemos jamais

Salve o navegante negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais


Proibido pela censura no começo dos anos setenta, este samba exaltação de João Bosco e Aldir Blanc estourou nas rádios na voz de Elis Regina. Antes, porém, teve sua letra modificada várias vezes para poder ser gravada e divulgada na mídia. “Os dois foram chamados pelo Departamento de Censura para explicar a música que trazia à tona um assunto proibido pelas forças armadas”.
Foram trocadas palavras como, por exemplo, almirante por navegante, substituindo outras por polacas, mulatas, baleias etc., terminando com a hilariante desculpa de um dos agentes descrito por Aldir Blanc: “O cara chegou com a letra na mão e me disse: o que ta pegando mais não é o lado político e sim a questão da exaltação da raça, por que essa música faz uma tremenda exaltação ao negro”.

Referências Bibliográficas:
Maestri, Mário – “Cisnes Negros” – Ed. Moderna – 2000 SP.
Morel, Edmar – “A Revolta da Chibata” – Ed. Graal – 1996 RJ.
Granato, Fernando – “O Negro da Chibata” – Ed. Objetiva – 2000
Jornal: “A Voz Popular” – Centenário de Nascimento do Almirante
Negro – 29/11/1980 – S. J. Meriti - RJ
Moacir Campos – Depoimento oral – 2008