Crônicas de conteúdo histórico-cultural sobre artistas, personalidades, políticos e acontecimentos em Duque de Caxias, RJ, projeto concebido pelos jornalistas Alberto Marques e Josué Cardoso.

sábado, abril 26, 2008

VISITA DE UMA FRANCESA
À BAIXADA NO SÉCULO XIX


Guilherme Peres (Historiador e fundador do IPAHB

Anotações pessoais e observações curiosas são hoje motivos de pesquisa de quantos procuram colher, na seara literária deixada por alguns viajantes estrangeiros que visitaram o Brasil durante o século XIX, informações de valioso conteúdo histórico e antropológico.
A relação imensa desses visitantes que desembarcaram no Brasil, a maioria no Rio de Janeiro, portal de entrada para o país, deixou registrados suas impressões da cidade e seus arredores. Enfadonho seria mencionar seus nomes a partir de 1808 após a chegada da família Real, constituindo-se de cientistas, artistas, comerciantes, navegadores, contrabandistas e aventureiros.
Raríssimo, entretanto entre os visitantes a presença de uma mulher, deixando registrado em forma de livro, o testemunho de sua viagem durante a metade desse mesmo século publicado após sua volta à Europa, sob o título “Uma Parisiense no Brasil”. Estamos nos referindo a Adéle Toussaint-Samson, uma jovem francesa professora de dança e artes cênicas, que um dia sobraçando o filho e o marido, embarcou no porto de Havre a bordo do veleiro “Normandia” com destino ao Rio de Janeiro e veio “fazer a América”.
Sofrendo a epidemia de cólera que assolava a Europa em 1849, fazendo mais de “dezesseis mil mortos na cidade de Paris”, a crise se mostrava cruel para aqueles que dependiam do público para sua sobrevivência econômica, tornando vazias as casas de espetáculo, o casal foi convencido por um tio do marido, que havia obtido sucesso financeiro na Capital do Império do Brasil, a viajar para ali em busca de fortuna.
Garimpada entre essas poucas mulheres que por aqui passaram, deixando registrada sua presença, assinalamos a mais conhecida entre os pesquisadores, a inglesa Mary Graham, que nos visitou entre 1821 e 1825. Preceptora dos filhos do imperador D. Pedro I e exercendo com dificuldade essa atividade, durante menos de um ano demitiu-se devido às freqüentes intrigas palacianas. Ao voltar para a Europa publicou o livro intitulado “Diário de uma Viagem ao Brasil”.

O Porto de Estrela foi, por muitos anos, a porta de acesso a Vila Rica e seus tesouros.

ADÉLE TOUSSAINT-SAMSON
Adéle nasceu em 1826 na capital francesa. Filha de um professor de teatro e autor de peças teatrais cresceu entre o burburinho dos palcos parisienses, “revelando-se uma mulher de mentalidade avançada diante dos costumes vigentes em sua época”, diz Maria Inês Turazzi no prefácio de seu livro recentemente editado na Brasil.
Casou-se ainda jovem “por volta dos vinte anos de idade” com um dançarino de teatro nascido no Brasil chamado Jules Toussaint. Jules era filho de pais franceses, Auguste Toussaint e Josephine Toussaint que estiveram no Rio de Janeiro no período de 1815 até 1821.
Desembarcando no Brasil por volta de 1850 (a data não é precisa devido ao extravio do registro de estrangeiros nesse período), Adéle e Julie foram morar com o tio, um tal José Maria Toussaint, professor de dança “e outros francesismos muito valorizados pela aristocracia brasileira da época”. Mãe de um menino de um ano e meio de idade chamado Paul, foi fácil se adaptarem ao meio artístico e cultural da cidade, pois a comunidade francesa contava com centenas de “artistas, comerciantes, impressores, modistas e professores das mais variadas disciplinas, incluindo desde a própria língua francesa até matérias como a matemática, o desenho, o piano e a dança”.
Ao alugar uma casa na Rua do Rosário para onde se mudou com a família, Adéle descreve sua condição higiênica e o comércio que compunha esse arruamento: “Ela é estreita, triste e, por todo estabelecimento comercial não tem mais que vendas no térreo das casas, isto é, sombrias lojas onde se amontoam montanhas de carne seca e bacalhau, os sacos de feijões e de arroz, bem como os queijos de Minas...dizer-lhes que cheiro horrível exalam aquele bacalhau e aquela carne seca é impossível !...a rua é estreita, jamais varrida ou molhada, que o sol dos trópicos a aquece incessantemente e tentem fazer uma idéia das emanações que aqui se desprendem !”
No ano da chegada da família, um surto de febre amarela varreu a Capital do Império e seus arredores. “A mortalidade era tanta na cidade e os cemitérios estavam tão cheios que já não se podiam enterrar os mortos”. A própria Adéle caiu doente, em seguida a escrava que eles haviam alugado, e por último seu marido. Dos vinte oito passageiros do “Normandia” que chegaram à cidade juntos com o casal, havia apenas três meses, dezessete já haviam sucumbido.
A procura de um médico patrício por recomendação, chamado Dr. Paitre foi inútil, pois o mesmo havia contraído a doença e se ausentara da Côrte, obrigando Adéle e seu marido a se auto medicarem com remédios homeopáticos trazidos da França, oferecido pelo seu próprio descobridor Samuel Hahnemann. “Sem conhecer ninguém na cidade, sem médico, sem criado, com muito pouco dinheiro e um filho de dezoito meses que eu acabara de desmamar, assim era a nossa situação”.

ESCRAVIDÃO
Superada a doença, retornaram ao convívio das ruas e Adéle registra com um choque de revolta a realidade da escravidão: “a cada instante minha alma revoltava-se ou sangrava, quando eu passava diante de um daqueles leilões em que pobres negros, em cima de uma mesa, eram leiloados e examinados nos dentes e nas pernas como cavalos ou mulas, quando via o lance ser coberto e uma jovem negra ser entregue ao fazendeiro que a reservava a seu serviço íntimo, enquanto seu negrinho era vendido a um outro senhor”.
A visão horrenda do comércio de carne humana a ser oferecida pelas ruas, trouxe momentos de repugnância à jovem francesa. “Meu coração indignava-se quando alguns passos adiante, encontrava um pobre negro usando uma máscara de ferro; era ainda dessa maneira que se punia a bebedeira do escravo...e imagine que suplício sob aquele calor tropical”.
A fuga era punida com o rigor do carrasco, “os que tinham fugido eram atados por uma perna a um poste, outros traziam no pescoço uma grande canga, uma espécie de jugo com que se põe nos bois...outros eram enviados a Correção, onde, depois de os ter atado a um poste, quarenta, cinqüenta, sessenta golpes de chicote lhes eram administrados muitas vezes. Quando o sangue corria, parava-se; suas feridas eram pensadas com vinagre e no dia seguinte, recomeçava-se”.

A Igreja de Nossa Senhora da Piedade de Vila Inhomirim, onde foi batizado Luis Alves de Lima e Silva, Patrono do Exéercito, está em ruínas e pode desabar a qualquer momento se o IPHAN e Ministério da Cultura não agirem rápido (Foto: Arquivo/IPAHB)

A CIDADE
Adéle descreve as manifestações culturais e religiosas que se festejavam na cidade. A Quinta-feira Santa e o dia de São Jorge eram iniciados com procissões que passavam pelas ruas diante da multidão. “Todas as janelas da cidade, nesses dias embandeiravam-se de cortinas de damasco vermelho, azul ou amarelo”.
Os festejos de São João também são descritos com os detalhes das fogueiras acesas pelos negros espalhadas pela cidade, “nessas esquinas cozinham-se batatas-doces, e cana-de-açúcar, que são servidas muito quentes, em grandes bandejas, no meio da festa”. O lundu, dança de origem negra, era absorvida pela alta sociedade quando ela observa que “vi, nesses dias, algumas damas brasileiras dançar a pedido geral, o lundu... com um movimento de quadris e de olhos não desprovidos de originalidade, e que todo mundo deve acompanhar estalando os dedos como castanholas, para bem marcar-lhe o ritmo”.

Da estação e do embarcadouro na Praia de Mauá, inaugurados em 30 de abril de 1854, portanto há 154 anos, por D. Pedro II e o Barão de Mauá, pouco resta. (Foto: Arquivo/IPAHB)

PORTO DA PIEDADE
Antes de prosseguirmos relatando os registros contidos no livro, referentes a depoimentos de inegável interesse antropológico e geográfico para os estudiosos dessa região durante o século XIX, queremos descrever um pouco da história do porto da Piedade, em que nossa viajante desembarcou. Referência para os viajantes que se destinavam a Magé a partir desse século, ou subiam a serra em busca da região que mais tarde se transformaria em Teresópolis.
Durante o período da mineração, o povoamento de extensas áreas ao longo do caminho do Pilar em direção às minas, aberto pelo bandeirante Garcia Rodrigues Pais em 1704 através da serra do Couto e suas variantes, como a do Sargento-mor Bernardo Soares de Proença com o caminho do Inhomirim em 1724, que partindo do porto da Estrela, atravessava Córrego Seco, futura Petrópolis, inúmeros sesmeiros foram ocupando essas extensa áreas a partir do rio Paraíba do Sul, e subindo seus afluentes da margem direita em direção à serra do Mar: rio Preto, Socavão, Imbuí, Paquequer e Paquequer Pequeno, comunicando-se com os portos através do Caminho Novo ou de suas variantes.
É possível que durante a ocupação daquela região serrana, um escoadouro para a produção das fazendas, através de um desfiladeiro saindo em Frechal (atual Bananal) em Magé, fosse ao encontro de um porto à margem da baia de Guanabara, ao lado de uma capela dedicada a N. Sra. da Piedade de Magepe, ocupado desde o século XVI por Cristóvão de Barros, e cresceria nos séculos seguintes, salpicada por inúmeros engenhos e canaviais.
Baltazar da Silva Lisboa ao explorar as terras por trás da Serra dos Órgãos e registrá-las em um mapa, provavelmente subiu por essa vereda, transformada em caminho no princípio do século XIX.
Aceitando o convite de um amigo de seu marido, para visitarem uma fazenda, em Magé, de sua propriedade, e na esperança de livrar-se de uma febre que a perseguia, Adéle, o esposo e o filho, embarcaram em uma barca a vapor para atravessarem a baia de Guanabara em direção ao porto da Piedade. Durante três horas o barco navegou por entre “ilhas encantadoras”, e Adéle descreve alguns tipos humanos que faziam parte dos passageiros. “Gordos vendeiros portugueses, tiravam os sapatos e coçavam os pés durante a viagem; outros estendiam-se nos bancos, semidespidos, e roncavam, sem se importar com seus companheiros de viagem; negros sujos e malcheirosos, carregados de cestos e de gêneros de toda a natureza atravancavam o barco, de sorte que ficamos muito satisfeitos de deixar essa encantadora sociedade ao desembarcar na Piedade”.
Custódio Ferreira Leite, o futuro Barão de Airuruoca, junto com seu irmão Francisco Leite Ribeiro, abriram a suas expensas, uma estrada de Magé até a ponte do Sapucaia com vistas ao movimento que crescia no porto da Piedade. Foi Ferreira Leite quem iniciou nesse porto a partir de 1836, a construção de um hotel.
George Gardner, o botânico que percorreu a Côrte e as províncias do Rio de Janeiro, ali passou naquele mesmo ano, registrando em seu livro “Viagens no Brasil”: “Em Piedade onde apenas se encontram algumas poucas casas esparsas, achava-se em construção um grande hotel do coronel Leite, um senhor brasileiro que estava fazendo a própria custa, uma nova estrada através da Serra dos Órgãos para se ligar a que vai de Porto da Estrela aos Distritos de mineração”.
É desse hotel que vamos encontrar referência no seu livro, durante o desembarque da família Toussaint. “Que triste porto era aquele, naquela época! Havia ali apenas uma grande habitação, uma espécie de grande construção cujos imensos galpões serviam de entreposto aos gêneros da cidade e do interior. Lá paravam os fazendeiros, os mascates e os tropeiros”.
Ao chegar ao hotel, Adéle não poupa criticas ao estado de desleixo em que este se encontra. “Ali se alugam a toda essa gente, quartos cujos leitos devem ser habitados, juro-lhes, e dão-lhe de comer. No rancho, são reunidos confusamente mulas, cavalos carneiros e porcos. Era lá que as nossas montarias deviam nos esperar”.
Ao ser indicado um quarto para a mudança de roupas adequadas à montaria, a francesa ficou horrorizada com a falta de limpeza que se estendia aos dormitórios, “a sujeira daquele lugar não pode ser descrita. Eu não sabia onde colocar as roupas que tirava e as que ia pôr; as cadeiras estavam cobertas de poeira e os leitos eram ainda mais sujos; de sorte que hesitei mais de um quarto de hora antes de conseguir tomar a decisão de vestir-me”.
Ao se dirigirem às montarias para prosseguirem viagem “o Sr. P.,” dono da fazenda denominada São José, apresentou-lhes um pagem para acompanhá-los. Comentado com desdém o episódio verificamos que os olhos preconceituosos daquela francesa, após alguns anos no Brasil, ainda não estavam culturalmente habituados a nossa negligencia, “vejo chegar um negro de beiços grossos, nariz achatado, com lã de carneiro como cabeleira, que havia sido fantasiado com uma grande libré vermelha, cujos galões desbotados anunciavam, aliás os serviços prestados, e que devia sem dúvida, ter figurado no Théâtre Français e, sucessivamente, em todos os outros teatros de Paris, antes de vir adornar os ombros do pobre africano...uma calça de algodão grosso e enormes esporas de prata, presas por uma correia a seus sujos pés descalços”. A figura cômica do “pagem” despertou-lhe “uma enorme vontade de rir, que tive muita dificuldade de conter durante todo o tempo da viagem”.
Ao lado do fazendeiro, a família pôs-se a cavalgar, “meu marido em seguida ao lado do meu primeiro filho, que tinha apenas sete anos, e no entanto montava muito bem”. O início do caminho era arenoso, quase sem vegetação. Aos poucos adentram a floresta, e Adéle se extasia diante da sinfonia de sons partindo do seu interior, “gritos dos macacos e dos papagaios vêm lembrar de que está no Brasil... Todo o caminho então não é mais que um encantamento... Vêem-se apenas cipós e plantas parasitas, emaranhando-se nas grandes árvores. É uma profusão de folhas, de flores, de frutos, mais encantadora que tudo que o homem arranja ou, antes desarranja. Eu não me cansava de admirar”. O caminho era estreito, e percebemos que para chegarem àquela fazenda, tinham que atravessar uma região um pouco montanhosa, “tendo encontrado outros cavaleiros que cruzavam conosco, tivemos de colar nossos cavalos no rochedo”.
A FAZENDA
Após três horas de viagem chegaram à fazenda São José: “O sol começava a empalidecer”. Junto à porteira, o gado esperava para entrar no curral, “uma centena de bois, vacas e touros” lhes impediam a passagem. O fazendeiro chamou o pastor, “um pequeno moleque de uns onze anos, que tinha por toda a vestimenta apenas um saco de algodão grosso preso em torno de sua cintura por uma corda e erguido na frente como uma espécie de cuecas. O menino reuniu seus animais, e pudemos enfim atravessar a boiada, não sem apreensão de minha parte”.
Ao se dirigem aos quartos onde os esperava um banho, Adéle revela o costume de sorverem um cálice de cachaça “destinado a devolver-nos as forças”. O fazendeiro, que durante a viagem mostrou-se educado e amável, transformou seu caráter tornando-se estúpido e grosseiro com os servos, cerca de “cento e vinte negros e negras para o serviço da exploração agrícola... ele mal disse bom dia a uma mulher francesa que cuidava de sua casa, e mal respondeu aos escravos da habitação que se apertavam em redor dele para pedir-lhe a benção”.
Após o banho foi servido o jantar. Em uma sala “comprida e estreita”, apenas uma mesa quadrada compunha o mobiliário, em torno da qual se enfileiravam bancos de madeira. Sobre esta, a panela de feijoada acompanhada de “cestos cheios de farinha de mandioca, um grande prato de arroz cozido na água e duas galinhas, bem como bananas e laranjas”.
A carência de pães nas refeições, obrigava um negro a se deslocar a cavalo aos sábados, “a um pequeno vilarejo chamado Santo Aleixo, que tinha um padeiro que se dignava assá-lo uma vez por semana”.
O episódio a seguir é digno de registro neste pequeno roteiro seguindo os textos da visitante francesa. Após o jantar, à luz de velas colocadas sobre castiçais, Adéle descreve o encontro e o diálogo do fazendeiro com um feitor chamado Ventura e seus dois seguranças. “Os três tinham por vestimenta apenas uma espécie de camisa grosseira, posta por cima de suas calças de lona para vela...eles giravam em uma das mãos o chapéu de palha grossa, enquanto a outra estava munida de um comprido bastão com ponteira de ferro e Ventura segurava o chicote, insígnia de seu comando”. Um imenso facão pendurado na cintura completava o vestuário
As perguntas feitas pelo “senhor” num “tom seco e duro” eram respondidas pelos escravos com temor e humildade.
- “O que foi plantado esta semana ?
- Arroz senhor.
- Foi começado o corte da cana ?
- Sim senhor; mas o rio transbordou, e vamos precisar refazer os canais.
- Envia para lá vinte negros amanhã de manhã .
- Que mais ?
- Henriques fugiu.
- O cachorro! Ele foi apanhado ?
- Sim senhor, está no tronco.
- Que lhe seja aplicado vinte golpes de chicote e posta a canga no pescoço. . - Sim senhor. Um bando de porcos do mato está devorando todas as plantações
de batatas e uma onça foi vista perto da torrente; precisaríamos dos fuzis.
- Tereis três esta noite. É tudo ?
- Sim senhor.
- O engenho começará a trabalhar amanhã. Está em condições ?
- Sim senhor.
- Está bem. Agora chama os negros para a reza”.

Em seguida, após o grito do feitor “salta para a reza!”, e o badalar de um sino pendurado na varanda, os negros saíram de suas senzalas atravessando a noite como sombras fantasmagóricas “subindo um a um as duas escadas da varanda”. Em um dos cantos da sala foi aberto um oratório ladeado por quatro círios “onde o Cristo aparecia no meio de quatro vasos”. Dois negros lideravam a oração com sotaque de latim que um capelão então lhes ensinara: “Santa Maria, mai de deos, ora por nobis” repetindo o mesmo bordão dezenas de vezes, apenas trocando o nome dos santos conhecidos, repetido em coro uníssono pelos presentes. Essa reza era feita todos os sábados.
Horrorizada com o espetáculo degradante que presenciou, Adéle não esconde sua perplexidade, registrando: “Foi lá que as misérias da escravidão apareceram para mim em toda a sua hediondez. Negras cobertas de andrajos, outras seminuas tendo por vestimenta apenas um lenço atado atrás do pescoço e sobre os seios, que mal velava seu colo, e uma saia de chita, cujos rasgos deixavam ver seu pobre corpo descarnado; negros de olhar feroz ou embotado vieram pôr-se de joelhos na laje da varanda”.
Marcas de tortura nos ombros desnudos deixavam ver os lanhos do chicote transformados em cicatrizes. “Vários estavam afetados por horríveis doenças, como a elefantíase ou a lepra. Tudo aquilo era repugnante, hediondo. O temor e o ódio, eis o que se lia em todos aqueles rostos, que eu nunca vi sorrir”.
Após a oração, os negros desfilaram diante dos brancos presentes pedindo a benção em que estes respondiam: “Eu te abençôo”.
O silêncio da noite cobriu o vale quando todos foram dormir. Ao amanhecer, os galos e o sino na varanda despertaram os escravos para o trabalho. Adéle levantou-se para assistir pela primeira vez, àquela cena diária, emoldurada pela paisagem bucólica que rodeava a região, “do alto da montanha, atrás da fazenda, uma magnífica cascata estendia seus lençóis de água prateada, e aquela montanha estava coberta de matas virgens, onde os frutos e as flores emaranhavam-se em uma confusão encantadora. Do outro lado, na frente da habitação, estendiam-se imensas pastagens, onde mais de cem cabeças de gado estavam reunidas. Os bois ainda dormiam”.
Postado nas portas da senzala, o feitor empunhava um chicote conferindo os que tardavam em sair. “Ô patife! Puxa p’ra fora !”, gritava o velho Ventura. Formados em três grupos de mais ou menos vinte cinco negros e negras cada um, seguiram destinos diferentes, um dos quais dirigidos por Ventura, “tomou o caminho do mato”. Outro, acompanhado de um carro de bois “com imensas rodas de madeira maciça” em direção ao canavial, e o terceiro para as plantações. Seguiu com um dos pequenos pastores os animais de chifres, “um segundo o seguiu com o rebanho de carneiros”, e Adéle registra ironicamente: “as barreiras abriram-se e todo aquele gado humano partiu com o outro para o trabalho”.
Elogiando o sabor do leite na refeição matinal, “como não bebi em nenhuma outra parte”, a francesa justifica: “por causa do perfume delicado que lhe dão as goiabas, as pitangas, as mangas e sobretudo as plantas aromáticas, de que as vacas são muito gulosas e com as quais se alimentam nas matas”.
Ao tanger o sino às nove horas anunciando o almoço, anotou a presença de duas cozinheiras: “a dos brancos e a dos negros, assim como há duas cozinhas”. Diante do cômodo enfumaçado dos negros, Adéle anotou o uso de dois caldeirões: um com feijões e o outro com angu. Humildemente os escravos chegavam com meia cabaça às mãos, sendo servidos pela cozinheira “com uma grande colherada de feijões, acrescentando um pequeno pedaço de carne seca da mais baixa qualidade, bem como um pouco de farinha de mandioca para polvilhar tudo; a outra distribuía o angu aos velhos e às crianças”.
Ao se afastarem resmungando pela pouca quantidade servida, e a carne em tão mau estado, que segundo a escritora “nossos cães por certo não iam querer saber daquela comida”. Arrastando-se pelo chão em plena nudez, alguns negrinhos “arrotavam suas rações de feijões, que seus frágeis estômagos mal podiam digerir; por isso, quase todos tinham barrigas grandes, cabeças enormes, pernas e braços franzinos, enfim, todos os sinais do raquitismo”. Não compreendendo o comportamento do fazendeiro que, mesmo do ponto de vista comercial, não tratasse bem seus escravos com o objetivo do lucro, ao negociar a “carne humana”, entretanto disseram-lhe que “não era assim em toda a parte, e que em várias fazendas os escravos eram muito bem tratados. Quero crê-lo; quanto a mim, digo o que vi”.
Adéle visitava freqüentemente os quartos da senzala onde essas crianças dormiam, “em esteiras postas sobre uma espécie de cama de campanha, em quartos cujo ar se renovava apenas por uma porta aberta para um corredor sujo, e viviam ali em uma podridão de que não se pode fazer uma idéia”. Suas mães, três dias após o parto, eram obrigadas a lidar com os serviços da casa enquanto amamentavam, e voltavam aos serviços da lavoura em poucas semanas, deixando seus filhos aos cuidados “de negras velhas inválidas ou de crianças de seis a sete anos, que lhes enfiavam por alimento uma espécie de papa feita de amido e água”.
Durante essas visitas, a francesa levava-os para passear e banhá-los, pois freqüentemente eram vistos acocorados sobre poças de água “com os pés na lama e a cabeça sob o sol ardente, sem que ninguém se preocupasse com isso”.
Durante sua permanência na fazenda, Adéle passeou por seus arredores a cavalo, lembrando-se do dia em que o fazendeiro convidou-os para uma visita a uma pequena fábrica
de fiação de algodão de propriedade de um norte-americano, instalada “em um vilarejo chamado Santo Aleixo, distante da fazenda São José apenas duas léguas”. Infelizmente nossa visitante não prossegue na descrição dessa manufatura.
Lembramos que realmente após a fundação de Petrópolis, e esgotado o trabalho nas estradas, o colono via-se obrigado a exercer inúmeras outras atividades adaptados a sua habilidade manual: carpinteiro, pedreiro, pintor etc, se oferecendo nas raras obras públicas ou privadas que se iniciavam na região, além da concorrência do grande número de “profissionais”. Lavouras e os poucos estabelecimentos fabris da periferia também absorviam essa mão de obra disponível.
As fábricas construídas ao pé da serra na região de Magé, envolvidas na produção de cerâmica e tecidos, contribuíram de forma decisiva para a sobrevivência desses colonos. Soares de Souza na revista do IHGB afirma ser grande a quantidade de alemães que aparecem trabalhando nos arredores de Petrópolis, “e até na fábrica de Santo Aleixo, onde em 1849, de 116 operários ali existentes, 84 eram alemães”.

O FEITICEIRO
Não podemos deixar de comentar essa figura das mais importantes nas comunidades escravas registrada por nossa visitante. Homem alto, esguio, cabeça branca dizendo-se ter mais de noventa anos. “Estava envolto numa capa raiada, trazia uma espécie de alforje pendurado de lado e tinha um bastão na mão. Seu rosto era sério e pensativo”. Foi chamado para atender a um escravo picado de cobra trazido do canavial numa carroça, e vomitando sangue.
Ao aproximar-se do enfermo, fê-lo sorver “uma infusão de plantas que só ele tinha o segredo, e afirmou que curaria o negro, com a condição, porém, de que nenhuma mulher entrasse durante sete dias, no quarto daquele de quem cuidava; sem isso não respondia por nada”. As recomendações foram seguidas e o negro ficou curado.
Ao procurar o feiticeiro para saber quais as plantas havia empregado para o tratamento de uma picada tão venenosa transmitida pela cobra jararaca, esse limitou-se a dizer que era segredo, seguindo-se o diálogo:
- “Por que não revelas aos outros ?
- Eu cuido deles enquanto estão doentes, é o bastante.
- Mas, quando morreres ?
- Tanto pior para eles; se fossem bons comigo, eu lhes diria muitos segredos que sei, mas fogem de mim e ensinam seus filhos a me temer. Levarei meus segredos comigo”.

SEGUNDA VISITA À FAZENDA
Quatro anos depois a família voltou à fazenda conduzindo dois filhos: Paul, com doze anos e Maurice, com dezesseis meses ainda sendo amamentado. Dessa vez, sem o auxílio do anfitrião para conduzi-los desde o Porto da Piedade, valeram-se dos serviços de um mulato chamado Fernando. “Um tipo dos mais notáveis, que tocava guitarra e se perfumava da cabeça aos pés com água de colônia quando estava a meu serviço”.
A marcha lenta devido a dificuldade em transportar a cavalo e a pé as crianças, ora no colo, ora nas costas do mulato, fizera com que a tarde chegasse quando ainda tinham três horas para caminhar. Temendo os perigos da noite que estariam expostos na floresta, resolveram seguir o conselho do pagem e tomaram o desvio do caminho para pernoitarem em outra fazenda, pertencente a “Viscondessa de P. e G.”.
O feitor recebeu-os com hospitalidade, providenciando um bom quarto “onde tive a alegria de ver meus dois filhos adormecidos cada um em uma cama, em vez de expostos, na floresta, a toda espécie de perigos”. Após a refeição e recolherem-se aos aposentos, Adéle teve uma surpresa: a porta que ficara aberta para a varanda que envolvia a casa, foi transformada em passarela de mulatas exibindo saias coloridas, lançando olhares maliciosos ao seu marido.
Ao fechar a porta, a escuridão obrigou a hóspede a pedir uma lamparina a uma negra que prestava serviços na casa. Foi-lhe trazida uma tocha de resina “cuja fumaça nos teria sufocado se não houvéssemos mantido escancaradas as portas internas do aposento”. Entretanto aquela tênue luz fumacenta foi-lhe útil para vigiar os “enormes ratos” que invadiram o aposento em busca dos resíduos da ceia, mantendo-a acordada apesar do cansaço, vigiando as camas das crianças ante a ameaça dos roedores.
Adéle registrou a presença nessa fazenda de uma jovem mulher branca, descalça, em desalinho, e não hesitou em perguntar pela manhã, ao ser servida com uma tigela de leite, se era ela a mulher do feitor. Respondendo que sim, perguntou-a por que parecia tão triste.
- Sou bem infeliz senhora, respondeu ela.
- Não é a mulher do administrador?
- Para minha desgraça.
- Como?
- Ele me trata indignamente. Aquelas mulatas, acrescentou ela, é que são as verdadeiras senhoras da fazenda; por ela meu marido me cobre de ultrajes.
- Por que suporta isso?
- Meu marido me força a receber essas criaturas até em minha cama; e é lá, debaixo dos meus olhos, que lhes dá suas carícias.
- É horrível!
- Quando me recuso a isso, ele me bate e suas amantes me insultam.
- Como continua com ele? Abandone-o
- E como viveria?
- Trabalhando!. Uma mãe não deve tolerar que a ofendam diante dos filhos, para que eles a respeitem, faça-se respeitar.
A pobre mulher escutava-me com muita atenção, tentando compreender e abrindo grandes olhos espantados”.
Amanhecia. O sol dourava a relva molhada de sereno enquanto os cavalos eram encilhados. Adéle olhou aquela mulher que veio despedir-se na porteira junto com o feitor, suas mucamas e servos, notando um leve sorriso em seus lábios. A família afastou-se lentamente ao trote dos animais. Ao longe, acenando as mãos, ficaram as representações do povo brasileiro, moldando uma cultura com base social escravocrata, sustentando uma economia cujo ápice era o império, a igreja, o senhor de engenho e os escravos.
Compreendendo o sorriso da mulher do feitor, a francesa deixou registrado para a posteridade o início de uma liberdade que, ainda que tarde nasceria, e se espalharia um dia no rosto dos cativos, sedentos também de libertação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Samson – Adéle Toussaint, - “Uma Parisiense no Brasil” Ed. Capivara Rio de Janeiro - 2003
Gardner, George – “Viagens no Brasil” – São Paulo – 1942
Souza, Soares de – “A Estrada da Estrela e os Colonos Alemães”. Revista do IHGB – volume 322 – Jan/Mar 1979
Revisão: Prof. Arnaldo José de Castro

sexta-feira, abril 25, 2008

PEDAÇOS DA NOSSA HISTÓRIA

A NAU DOS INFELIZES
Senhor Deus dos desgraçados!/ Dizei-me vós, senhor Deus!
se é loucura... se é verdade /tanto horror perante os céus?!
Castro Alves em “Navio Negreiro


* Guilherme Peres (Pesquisador e fundador do IPAHB
)


Na manhã do dia 6 de setembro de 1842, uma belonave britânica de 26 canhões denominada H.M.S.Cleópatra, adentrava a baia de Guanabara para uma escala de alguns dias destinados ao abastecimento. Sua missão nesta viagem era transportar o tenente-general sir William Gomm, que ia tomar posse como governador nas ilhas Maurício. Ancorado próximo ao porto estava o barco “Malabar”, também de bandeira inglesa com 64 canhões, no qual fazia parte da tripulação o reverendo inglês Pascoe Grenfell Hill que por questões pessoais, pediu transferência para o “Cleópatra”. Extasiado diante da imensidão da baia, o pastor registrou em seu diário: “A magnificência incomparável da baia do Rio, apertada na entrada, depois se abrindo em uma circunferência de dezessete léguas; suas cem ilhas; as montanhas que a envolvem mostrando cada mudança de contorno, coberta por uma riqueza de verdura do litoral até os cimos... misturando seus cumes com as nuvens; tudo isso compõe uma variedade e beleza que dificilmente cansa a vista. A cidade do lado esquerdo da entrada fica a quatro ou cinco milhas de distância da entrada”.
Ao desembarcar em frente ao Hotel Pharoux, comenta o grande movimento do cais nos barcos que saíam ou chegavam levando e trazendo passageiros e víveres dos navios ancorados ao largo. Contemplou uma praça na qual observou uma grande profusão de frutas e verduras espalhadas pelo chão e apregoadas por escravos.
“Uma alegria cordial se misturam ao redor de um pequeno fogareiro de carvão onde eles fritam seus peixes ou cozinham sua raiz de mandioca e batata doce. O trabalho mais pesado que se vê na rua é o do carregador de café, que leva sacos pesados na cabeça com seus passos acelerados, ao som de chaqualhantes substâncias dentro de uma bexiga que o chefe do grupo sacode e os outros acompanham cantando”.
Critica com veemência o Brasil por sua condição de país escravista, comentando que os casos de tortura e crueldade não eram divulgados pelos jornais do Rio de Janeiro, apenas anunciando casos de negros fugidos de uma jornada sobrecarregada de trabalho e subnutridos “dependendo dos caprichos do mau humor ou da avareza de seu dono”. Assistiu a um leilão de “mais ou menos vinte e cinco escravos de ambos os sexos, decentemente vestidos sentados em bancos atrás de uma mesa comprida, onde um de cada vez subia para ser melhor examinado pelos arrematadores. Um ar de obstinação parecia expressar seus sentimentos de degradação por estarem sendo postos à venda.”
No dia 14 de setembro daquele ano o “Cleópatra” levantou ferros singrando majestosamente em direção ao oceano Atlântico, buscando o continente africano.. Ao iniciar essa viajem o pastor Hill não suspeitava que fosse testemunhar para a posteridade através de seu diário, talvez o mais contundente registro que temos conhecimento das condições degradantes de um navio brasileiro destinado ao transporte de escravos, após ser aprisionado pelos ingleses. Num tom seco e direto, o pastor narra a ventura desse barco “tumbeiro” denominado “Progresso”, que seguia para o Rio de Janeiro. Deixando as ilhas Maurício, o ‘Cleópatra” se dirigiu-se à foz dos rios da região da costa de Moçambique, infestada de barcos negreiros. “Um novo interesse aqui se ligava a cada nau que fosse vista. O mercado de escravos na costa da África no presente momento, está quase confinado aos distritos de Quelimane e Sofala, tendo cessado no Porto, graças aos zelosos empenhos dos últimos e do presente governador”. Ancorado fora da barra, no dia 23 de março de 1843 o comandante mandou uma barca subir o rio em direção a cidade de Quelimane, trazendo na volta uma carta do governador narrando que dois barcos brasileiros, o “Desengano” e o “Confidência”, foram capturados pelo brigue H. M. Lily, cuja tripulação composta de brasileiros e portugueses, apresentara-se a ele, tendo sido devolvidos aos seus respectivos países.
No dia 31, uma embarcação de dois mastros foi avistada ao longe “indo furtivamente ao longo da margem” tendo sido fracassado a tentativa do Cleópatra em contatá-la, alguns escaleres foram enviados “para vigiarem os pequenos rios ao longo da costa.”.
Ao amanhecer do dia 12 de abril “ao voltarmos para Quelimare, o vigia no alto do mastro principal percebeu a sotavento uma embarcação que pela distância mal era visível; mas sua localização tendo sido considerada muito suspeita, a ordem foi de dirigir-se para ela”. Um vento forte seguido de chuva dificultava a perseguição à estranha embarcação. Após algum tempo o sol voltou a brilhar revelando próximo um “bergantim de linhas arrojadas como nós... desmastrado durante a ventania”. De repente o barco içou as velas pôs-se em fuga desfraldando a bandeira brasileira, em resposta a bandeira britânica que tremulada no mastro perseguidor.
Posicionaram-se os homens da tripulação em torno aos canhões e ouviu-se o primeiro tiro de advertência em direção ao bergantim. Seguiu-se mais alguns outros, sendo ignorados pelo perseguido até que, perdendo distância, arriou as velas e aguardou aproximação de seu captor Um escaler conduziu um oficial para tomar posse do navio, e substituir a bandeira brasileira pela bandeira britânica, pois aparentemente não havia dúvidas quanto sua atividade de navio negreiro. Seguiu-se o capitão acompanhado do narrador deste diário e “um cirurgião para examinar o estado de saúde a bordo da presa”.

O APRISIONAMENTO
A visão do quadro degradante que o pastor viu, mesmo em sua narrativa fria é horripilante. Negros nus e famintos se atropelavam no convés do navio arrebentando barricas de farinha, “a raiz da mandioca em pó; outros tendo quebrado os caixotes seguravam grandes pedaços de carne de porco e de boi; e alguns pegaram aves das gaiolas e as devoravam cruas”. Panos torcidos eram enfiados nos tonéis de aguardente, “um forte rum brasileiro do qual beberam em excesso”. Os gritos ensurdecedores de alegria foram ouvidos depois que toda a tripulação inglesa subiu a bordo para livrá-los das correntes de ferro, as quais muitos deles ainda estavam presos. Após a tripulação de dezessete homens serem transferida para o barco inglês composto de três espanhóis e o restante de portugueses e brasileiros, foi avaliado a situação: tratava-se do navio brasileiro “Progresso”, deslocando cerca de 140 toneladas procedente de Paranaguá e seguia em direção ao Rio de Janeiro. Sua carga era composta de 447 negros. “Desses 189 eram homens, poucos, no entanto, passando dos vinte anos; 45 mulheres e 213 meninos”. Havia um grande número de doentes a bordo, suspeitando-se que a princípio fosse de 25, mais tarde descobriu-se uma quantidade maior.
Segundo a tripulação o comandante havia perecido afogado no porto de embarque. Tempos depois se descobriu que ele permaneceu escondido entre seus subordinados para fugir ao rigor das leis inglesas. Dois espanhóis e um português voltaram para o barco “Progresso” com a tarefa de cozinharem para os negros, juntamente com nove marinheiros, um tenente, um mestre quarteleiro, um contramestre e o pastor Hill, autor do diário do qual estamos seguindo seu roteiro.
Ao longo do tombadilho o pastor descreve os negros recentemente libertados, dormindo, enquanto a nave desliza suavemente à brisa do mar calmo. Corpos esqueléticos, uns sobre os outros, disputam o pequeno espaço. De repente, “o céu começou a se encher de nuvens e um nevoeiro espalhou-se pelo horizonte para barlavento”.
Os fortes ventos seguidos de chuva provocaram as cenas de horror que se seguiram, com os marinheiros querendo chegar até as cordas para recolher as velas, e a pisotearem os negros que se alvoroçaram aos gritos acompanhados da ordem de mandar todos descer para o porão. Durante a noite, o calor sufocante agitou “quatrocentos infelizes seres humanos apertados em um porão com doze jardas de comprimento... rapidamente começaram a fazer um esforço para voltar ao ar livre” através das escotilhas fechadas em cima deles.
“A única passagem de ar, o calor sufocante do porão, e, talvez o pânico da situação inusitada fez com eles pressionassem... acumularam-se nas grades, e agarravam-se a ela lutando por ar. Mas com isso barravam completamente a sua entrada. Posso afirmar sem exagero que os gritos, o calor “a fumaça do tormento deles” que subia não pode ser comparadas a nada desse mundo. Um dos espanhóis avisou-se que a conseqüência disso seria de muitas mortes.
Pela manhã, cinqüenta e quatro corpos de homens, mulheres e crianças foram conduzidas para o tombadilho e jogados ao mar. “Era uma cena horrorosa vê-los passar um a um, os membros enrijecidos cobertos de sangue e de sujeira” Outros estavam feridos ou fracos demais para se erguer. Haviam sido pisoteados. “Alguns ainda tremendo foram deitados no tombadilho para morrer, água salgada eram jogada sobre eles para revivê-los, e um pouco de água entornada em suas bocas”.
A refeição daquele dia consistia de farinha e água, “quase metade de meio litro que eles agarravam com inconcebível avidez... suas gargantas deviam estar ressecadas pelos choros e gritos que vararam a noite adentro”.
Na véspera de Páscoa, o pastor parece desabafar diante de tanta degradação: “O mundo não consegue apresentar um espetáculo mais chocante da desgraça humana do que esse nosso navio apresenta. Parece que uma cena tão angustiante possa ser testemunhada sem causar um efeito prejudicial no espectador... depois se familiarizando, ele vai em certo grau insensibilizando seus sentimentos”.
Dia de Páscoa, domingo, 16 de abril. Avistou-se o “Cleópatra” com sinais de que queria se comunicar, sendo feito a aproximação. Receberam “um velho português chamado Valerian, para ajudar a reparar nossas velas que eram velhas e fracas”, e um cirurgião assistente “que começou a examinar os doentes. A maioria dos casos era de disenteria e de ferimentos ulcerados. Um homem tinha uma profunda escara infeccionada causada por chicotadas. Uma pobre criança de seis ou sete anos perdeu quase todo o dedo grande do pé comido por “niguas”, ou seja, bicho de pé”.

O ROUBO DA ÁGUA
Na manhã de segunda feira, os meninos que anteriormente haviam sido rejeitados à bordo do “Cleópatra” por suspeitas de varíola, finalmente foram aceitos cerca de cinqüenta, pois se tratava de “violenta espécie de coceira”. Acompanhados de víveres para alimentá-los, consistindo de “dois sacos de arroz, um de milho moído, uma boa quantidade de carne-seca... que só desse último artigo o “Progresso” carregava um estoque suficiente para alimentar os negros durante dois meses”, além de seiscentos sacos de feijão miúdo, guardado abaixo do tombadilho dos escravos, arroz inferior, farinha, e “22 enormes tonéis, cada uma comportando cinco ou seis barricas cada”.
Referindo-se ao depósito de provisões o pastor registra: “armários trancados cheios de cerveja comum e de cerveja preta forte; barris de vinho; licores de várias espécies; macarrão; vermiceli; tapioca da melhor qualidade; caixas de picles ingleses, cada uma contendo doze vidros; caixas de charutos; uva moscatel; tâmaras, amêndoas, nozes etc.etc. Os viveiros no tombadilho estão cheios de aves e patos e tem onze porcos”.
O “Cleópatra” afastou-se rapidamente dando o último adeus de despedida. Durante a jornada o espanhol que fazia parte da tripulação anterior em atividade no navio brasileiro “Progresso”, revelou ao pastor dados interessantes de sua vil profissão. Narrou que durante os “dois ou três meses”, em que ficaram à espera do embarque da carga humana na praia, os negros ficaram muito doentes, “Alguns deles tinham vindo de longe no interior e chegaram em condições deploráveis e cinqüenta foram rejeitados como incapacitados para viajar”.
Curiosa a resposta do tripulante quando perguntado se acreditava no fim do tráfego de escravos, que cada vez mais era combatido pelas nações que assinaram um pacto para esse fim, “ele achava que no Brasil, onde havia grandes enseadas isoladas que facilitavam o contrabando, haveria uma grande dificuldade em suprimir o tráfego, embora se a autoridade do governo simpatizasse com a causa poderia fazer muito”.
O “Progresso” havia sido o quarto navio apreendido naquele ano. “Em Quelimane, oito ou nove navios pegam sua carga anualmente” continua o espanhol “e, calculando por baixo, com quinhentos escravos em cada um... agora nenhum escapa, é um trabalho para homens desesperados... Na costa leste os negros geralmente são pagos em dinheiro, às vezes em “fazendas”, algodão grosseiro a um custo mais ou menos de dezoito dólares por homem e doze por meninos. No Rio de Janeiro, seu valor estimativo é de 500 mil réis por homens, 400 mil réis por mulheres e 400 mil réis por meninos. Assim sendo uma carga de quinhentos escravos, a um preço vil, o lucro vai passar de 19.000 libras”.
Uma manhã um negro morreu e foi jogado ao mar. Seu corpo flutuou em torno do navio batendo contra o casco “de barriga para cima durante meia hora”. A tripulação ficou temerosa que algum tubarão pudesse alcançá-lo. Finalmente o cadáver se afastou para todo o sempre. O maior sofrimento dos negros era a sede. Com a água racionada eles sorviam as gotas de chuva que pingavam das velas. “Colam seus lábios nos mastros molhados e engatinham até as gaiolas das aves para compartilhar os alimentos”. Na hora da refeição, constando de feijão cozido com arroz, a comida era distribuída em tinas “ao redor das quais eles estão sentados em grupo de dez, e, a um sinal, começam a mergulhar suas mãos na mistura e com grande habilidade levam o conteúdo até suas bocas”.
. Um tubarão de grande tamanho foi pescado pela guarnição e serviu de refeição para os negros que se arregalaram com alegria durante a refeição. Porém, antes de abrir o peixe, ficaram temerosos “de encontrar restos dos nossos camaradas falecidos”. Uma febre estranha atacou seis homens da guarnição, inclusive o pastor. Manoel, o cozinheiro português, foi o primeiro acamar-se com delírios. “Nessas febres da costa da África é necessário não ficar acovardado; por que se alguém se acovarda, em quatro dias morre”. E foi o que aconteceu com Manoel. “O corpo foi costurado dentro de um saco, com um chumbo para fazê-lo afundar, depois foi trazido para a popa, onde os ingleses e os espanhóis esperavam, eu li o modelo de Serviço Fúnebre para ser usado no mar: “Entrego seu corpo com honras no mar, esperando pela sua ressurreição, quando o mar deverá entregar seus mortos e a vida do mundo ocorrer”.
No final de abril durante uma noite, todos acordaram com gritos ouvidos no convés dos escravos. Ao verificar o motivo, denunciaram: “estão roubando água”. Confirmada a denúncia, foram responsabilizados sete elementos como autores do furto. “O mal resultante dessa delinqüência não é só da água retirada e sim a sujeira que fica dos trapos que eles mergulham nos barris para tirar o líquido”. Pela manhã os acusados foram amarrados no convés “e cada um recebeu de quinze a vinte chibatadas: um espanhol, um inglês e um negro forte se revezavam na tarefa”.
A LONGA VIAGEM
Após vários dias de calmaria o “Progresso” velejava sereno, acompanhado de cardumes de toninhas com os marinheiros tentando arpoá-las. Em poucos momentos o céu encheu-se de nuvens carregadas com os relâmpagos rasgando o horizonte, sinalizando o recolhimento das velas. Trovões rolaram acompanhando o vento e as ondas que varriam o convés. Os gritos dos negros recolhidos apressadamente ao porão, o ranger de cordas e do tabuado faziam crer que o navio estava prestes a se partir.
Ao se iniciar o mês de maio, o navio seguia sua rota em calmaria entrando num novo hemisfério. A estação fria se aproximava mantendo os negros aninhados no porão. “Os negros nus já estavam começando a tremer e a bater os dentes”, que aumentava à medida que o navio avançava para o norte. As noites eram geladas e em uma manhã “sete negros foram encontrados mortos e entre eles uma menina”. A morte estendia suas asas com mais calamidade sobre esses infelizes. Em seu diário o pastor registra as cicatrizes de letras marcadas no peito e nos ombros dos negros, que segundo um português da guarnição, é para marcar as iniciais de seus respectivos donos. “Quando o navio chega ao Rio eles podem reconhecer suas propriedades” acrescentando que “a condição do negro é muito pior no Rio onde eles andam esfarrapados e maltratados “como um escravo” do que em Havana, onde às vezes está mais bem vestido do que muito branco”.
Nova tempestade colheu o “Progresso” com “vento violento acompanhado de chuva” ceifando mais vidas de negros recolhidos ao porão. Pela manhã: “três mortos foram as primeiras coisas que meus olhos viram no convés; um homem coberto por um cabo de corda, uma coisa horrível e repugnante; o pobre menino que sofria com bicho-de-pé e que agüentou seu sofrimento com muita paciência e uma menina, cujos dois olhos ontem estavam completamente fechados por causa de uma inflamação na cabeça. Suas vidas foram durante um tempo, uma carga pesada para eles e não poderiam se mais prolongadas, mas com certeza foram encurtadas pela inclemência do tempo”.
As tempestades se sucediam com freqüência. Ao entrarem nas zonas de turbulências com nuvens ameaçadoras, antecipava-se o recolhimento das velas e os negros eram recolhidos ao porão. “Rajadas se sucediam umas às outras misturando mar e ar em um lençol pulverizador, cegando os olhos do timoneiro. Ondas subindo altas, acima de nós, jogando para o céu as espumas de suas cristas e ameaçando engolir o navio a qualquer momento”. Cavalgando sobre as vagas, o velho brigue transportava em seu interior “os gritos agudos dos doentes através da escuridão da noite, subindo acima do barulho dos ventos e das ondas, pareciam as coisas mais tristes de todos os horrores desse infeliz navio”.
Ao amanhecer a mesma rotina trágica: três corpos jaziam no convés para serem lançados no mar: “o de um homem e os de dois meninos, trazidos do porão para o convés”. O homem havia sido surrado por seus companheiros alguns dias antes, e naturalmente não agüentou a falta de ar no porão na noite anterior. Dentre as doenças dos negros que se manifestavam à bordo, “os casos de feridas ulceradas assumiam uma aparência tão horrível que eu agora mal consigo olhar. Esses pobres pacientes, também estão sem exceção, atacados de disenteria, da qual eles têm certeza que vão morrer mesmo se curados das feridas”. O estado de desnutrição era cada vez era evidente na aparência dos negros transportados pelo “Progresso”. “Um menino que estava a um estado que não se consegue conceber em um ser humano”, durante a administração de um remédio composto de camomila, “Antonio o fez sentar para beber, quando sua cabeça caiu para frente e morreu nessa posição”.
Navegando numa região de calmaria, um horrível mau cheiro passou a exalar do porão impregnando todo o navio. A mistura das fezes e do suor dos negros doentes e esqueléticos que não podiam se locomover para o convés e permaneciam asfixiados num calor sufocante, faziam com que a tripulação se sentisse incomodada, “e na nossa cabine na popa é quase intolerável”.
“Aparentemente nada se movia nem no ar nem no mar nem no céu, exceto os enormes albatrozes, com suas azas de dezesseis pés bem abertas, dando volta uma atrás da outra e, às vezes passando tão perto, que quase tocam a grinalda da popa na qual eu estava sentado”.
Ao entardecer sombras foram vistas no horizonte denunciando terras, confirmada ao amanhecer com o aparecimento dos pombos do Cabo, em conjunto com os albatrozes e várias velas que surgiam ao longe, suspeitando que fosse a “baia Plettemberg, entre a baia de Algoa e o Cabo, alguns negros apontam interessados e curiosos para lá, mas um grande número deles senta-se junto no convés, com suas cabeças descansando nos joelhos aparentemente em uma apatia total para tudo ao redor”.
A morte ceifaria naquela manhã mais três meninos. Seus corpos estendidos no convés eram parte da rotina diária, “embora, durante os últimos sete dias os casos fatais tenham atingido uma média de quatro por dia”. No dia 1º. de junho, o “Progresso” se aproximava da costa quando foram transportados do porão mais oito corpos, “e agora não podemos mais nos aventurar a joga-los ao mar como antes, porque as ondas podem leva-los para alguma praia desabitada da baia na qual entramos ontem à noite”. Na baia de São Simão, o nevoeiro desfeito deixou ver dezenas de mastros e velas de barcos que se confundiam ancorados ao largo.

O OUTRO LADO DO MUNDO
Aproximando-se do cais, o navio lançou ferros, sendo logo visitado pelo fiscal sanitário. Em seguida o superintendente do Hospital Naval, também foi a bordo conduzido pelo pastor, já que eram velhos conhecidos, visitou o porão destinado aos escravos. “Por mais que ele estivesse acostumado a cenas de sofrimento, ele foi incapaz de suportar a vista, superando tudo o que ele podia conceber de miséria humana. Uma menina pequena chorava amargamente, presa entre as tábuas e lutando para libertar seus membros enfraquecidos, até que lhe deram assistência”.
Desembarcando no cais e após um descanso, o reverendo dirigiu-se abordo do “Isis” para cumprimentar um velho conhecido: sir John Marchal. De volta para a terra resolveu fazer a última visita ao “Progresso”, onde encontrou mais seis corpos empilhados no convés junto aos oito do dia anterior esperando para serem enterrados na praia. Os mais saudáveis já tinham sido embarcados em vagões para a cidade do Cabo. Cada um dos que era liberado, diz o pastor em seu diário: “recebia um casaco novo e quente, calças, e eram colocados agasalhados em confortáveis em vagões abertos... passei pelos negros e não os encontrei mais conformados com a mudança da situação... Cada mulher tinha um cobertor branco novo, além de roupas... responderam aos seus nomes, mas mostraram poucos sinais de alegria na ocasião. Dúvida e medo predominavam e seus semblantes pareciam aqueles das vítimas condenadas”.

Durante a limpeza do navio foi encontrado um menino preso nas taboas do porão em adiantado estado de putrefação. “Parte de uma das mãos tinha sido devorada e um olho completamente roído pelos ratos... os doentes que desembarcaram ainda são numerosos”.
Após cinqüenta dias da viajem de volta ao continente africano, chegava ao fim um dos mais dramáticos depoimentos de fatos abomináveis que envergonham as relações humanas. O “Progresso”, navio brasileiro apreendido pela bandeira britânica com sua carga infame de 397 negros destinados ao Rio de Janeiro, chegava ao porto próximo à cidade do Cabo com 223 sobreviventes, reduzidos em 175 homens, mulheres e crianças que pereceram em condições degradantes.

POSFÁCIO

Percorrendo o Rio de Janeiro durante a primeira metade do século XIX, o viajante inglês G. W. Freireyss registrou uma visita feita ao mercado do Valongo: “Basta entrar numa das espaçosas salas de um traficante na Capital, para ver uma porção de negros recém-chegados divertirem-se à moda do seu país, o que o traficante lhes permite por que sabe que a falta de movimento e a nostalgia lhes diminuem o infame lucro. Encontramos aí alguns centos de negros nus e rapados, diversos tantos na idade como no sexo, que formavam uma grande roda, batendo palmas com toda a força, acompanhadas com os pés e com um canto gritado e de três notas apenas”.
Após as primeiras visões desta degradação humana, Freireyss assinala que os navios chegavam com a quarta parte de sua carga doente, “enquanto outros que trazem consigo os germens da moléstia, sucumbem poucos dias depois da chegada”.
Muito já se escreveu sobre a história social do Brasil desde o processo colonial. O tráfico negreiro é um desses temas que enodoam seu relato, iniciando com o aprisionamento de uma população ordeira do interior do continente africano por tribos litorâneas e negociando seus irmãos com traficantes de nações européias. Famílias inteiras transformadas em escravos contribuíram durante mais de três séculos para o esplendor econômico dos impérios coloniais incluindo o britânico, que se travestiu de inquisidor do tráfego negreiro no século XIX por interesses econômicos.
Escrevi esse relato resumindo o texto do livro: “Cinqüenta Dias a Bordo de um Navio Negreiro”, transcrito do diário de bordo do reverendo Pascoe Grenfell Hill, garimpado no raríssimo acervo do bibliógrafo e acadêmico José Mindlin, traduzido por Marisa Murray e publicado recentemente pela José Olímpio Editora, na coleção Baú de Histórias. ** Revisão do texto: Professor Wagner Cortaz