Crônicas de conteúdo histórico-cultural sobre artistas, personalidades, políticos e acontecimentos em Duque de Caxias, RJ, projeto concebido pelos jornalistas Alberto Marques e Josué Cardoso.

quinta-feira, maio 11, 2006


Memórias de um ex-escravo reprodutor em Magé

João Antônio Guaraciaba nasceu no dia 20 de setembro de 1850. Preto, alto, forte, viveu grande parte de sua vida em Magé, Estado do Rio de Janeiro, onde morreu velho, enrugado e de carapinha branca com seus bem vividos 126 anos. Gostava de andar, mas seus passos ficaram lentos denunciando o peso da idade, o reumatismo e as “oito picadas de cobras que levou na perna direita, de tanto viver nos matos”, apesar de “lúcido e ainda enxergando bem para longe e sem sofrer de surdez”. Filho de mãe angolana que o teve aos quinze anos, e o Barão de Guaraciaba “um mestiço fazendeiro comprador de escravos negros na África onde conheceu sua mãe Angelina, então negra forte e bonita”. Depois de engravidá-la, prometeu buscá-los em outra viagem, trazendo-os assim para o Brasil num veleiro negreiro. João tinha apenas quatro anos de idade. Registrado em Magé, onde “tirou certidão com testemunha e tudo”, como filho do barão e Angelina Maria Rita da Conceição (nome cristão), “por que naquele tempo não tinha disso não, a data do nascimento passava de boca em boca, de parente para parente”.
Quando foi para Mauá, então Guia de Pacobaíba freguesia de Magé, João tinha 17 anos, levado pela mão de Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá “para tirar (procriar) raça de crioulo escravo para o Imperador, que conheceu aquele preto forte na fazenda do Barão de Guaraciaba, onde passou uns tempos e pensou até que ele era escravo. Chegou a querer comprá-lo, mas o pai disse que não vendia, por que João era seu filho”. Ao chegar a Pacobaíba, na barca do Barão de Mauá aquele negro de “mãos de dedos longos, braços fortes, capaz de segurar com força as mulatas e crioulas da fazenda”, viu pela primeira vez “o trem vomitando fogo e fumaça” e apesar de não ter sido escravo, “trabalhou no porto onde os barcos veleiros atracavam”. Viu diversas vezes o Imperador desembarcar no cais de Pacobaíba e pegar o trem para Raiz da Serra onde embarcava na charrete até Petrópolis. “Era um homem sempre com o rosto limpo e bem tratado”. Ficou em Pacobaíba fazendo alguns serviços para o Barão até “despois que apanhei idade é que fui escolhido para tirar raça. Na minha fazenda só tinha eu de reprodutor”. Segundo suas próprias palavras, ele só foi levado para as fazendas de Petrópolis e Correias com 23 anos de idade quando assumiu sua nova “obrigação”.
Guaraciaba afirmou que deixou mais de 300 filhos: 100 para D. Pedro II e 200 para o Barão de Mauá, fora os que teve com as mulheres da fazenda de seu pai em Campos, ainda adolescente. “Ficou nessa vida de reprodutor deitando com duas, três, quatro mulheres por dia nas senzalas em que o Barão e o Imperador mandavam até os 38 anos, quando a Princesa Izabel aboliu a escravidão” A história registra que quando João nasceu em 1850, a Lei Eusébio de Queiroz confirmava a Lei de 1831extinguindo o tráfego de escravos, punindo com penas severas os infratores. Seguiu-se a Lei dos sexagenários de 1855. A Lei de 1869 libertando os servos que fossem para a guerra do Paraguai. A Lei do Ventre Livre de 1871, e finalmente a Lei da Abolição de 1888. João se lembrava que depois que surgiu a Lei do Ventre Livre, todos continuaram escravos, “agregados às fazendas sem outro ganho que não a casa e comida simples”. Foi escolhido para ser reprodutor por que “era preto de Angola”. Os senhores queriam pessoas bem fortes para esse serviço. “Se nhô quer saber: nas fazendas que eu ficava aquelas que não panhavam prenhez comigo eram vendidas para outros fazendeiros. Os donos tinham muito interesse em mulher que reproduzisse, pra ter mão-de-obra barata, pra trabalhar a cana, o café e a mandioca”.
Achava a “atividade” legal por que “era premitido”. Ele gozava de regalias que o resto da negrada não tinha. “Jamais entrou no chicote, nem foi açoitado no tronco ou acorrentado. Nunca levou bolo de palmatória ou teve pés e mãos amarradas no instrumento de tortura chamado “vira mundo”, onde muito escravo morreu. Às vezes morriam com gangrena, de tanto esfregarem os braços nas correntes para se soltarem cortando a carne que infeccionava”. Com ele foi diferente, embora trabalhasse com os escravos do Imperador, ajudando na lavoura quando podia, tanto que era aposentado pelo Funrural e recebia mensalmente por um banco de Magé Cr$ 300,00. “É muito pouco” dizia ele “não dá pra viver não. Se não fosse os amigos não sei o que seria”. João também lembrava das canções cantadas no eito pelos escravos. Trocando branco por baranco ou furta por fruta, cantava o “Lundu do Pai João” que falava de justiça: “Baranco dize: preto fruta / preto fruta com razão; / Sinhô baranco quando fruta / quando panha casião; ./ O preto fruta farinha / fruta saco de feijão; / Sinhô branco quando fruta / fruta prata e patacão; / Nego preto quando fruta / vai pará na correção. / Sinhô baranco quando fruta / logo sai sinhô barão”.Ele era o único na fazenda que não pagava no pesado. Boa alimentação e descanso, quando nas senzalas as escravas já o esperavam. “Era uma de cada vez na cama”. João sorri mostrando seus dois únicos dentes amarelos. “De vinte que entravam, quinze pegavam filho”. Quando seu pai o entregou ao Imperador, sabia que ele iria ser “cobridor de mucamas”.
Sua descendência se espalha pela Baixada e na Serra, incluindo parentes do Barão de Guaraciaba, “mas quase não vejo”. Antigamente subia a serra até Petrópolis de trem, mas desde que o Presidente Castelo Branco extinguiu a ferrovia Mauá-Petrópolis por ser antieconômico, raramente ia de ônibus.
“Companheiro do Aleixo, no mundo acho no mundo deixo” dizia ele repetindo um ditado popular de seu tempo. Mesmo numa época em que a Igreja vigiava o comportamento sexual das pessoas, muita negra teve filho de senhores e muita senhora amaldiçoou seu marido. Gostou de algumas escravas, mas como lembrar do “jeito” delas se o tempo passou. Muitas já morreram. O que sabe é que tem filhos espalhados “pela aí” de setenta, oitenta anos e que seus traços estão no olhar e no requebro de alguma mulata de hoje, nos ombros largos e nariz afilado de algum crioulo descendente afastado de alguns de seus trezentos filhos. Naquele tempo, não bebia nem fumava “pra não estragar o corpo”. Gostava de festas: São João, São Pedro, Santo Antônio, São Jorge, São Marcos, e São Sebastião. Gostava de ver capoeiras darem os botes. Cantava e pulava até de Madrugada. Gelados nem pensar, tiram a potência do homem. “Esses gelados pareceu depois da Abolição, não servem pra nada. Só pegou no Brasil por que faz muito calor e o pessoal gosta de refrescar, mas eu conselho a juventude evitar gelados, sorvetes”.
Negro João fica meditando quando é indagado sobre quilombos. Fala sobre o da Vila de Marcos da Costa e o da serra de Santa Catarina, perto de Petrópolis.
E os capitães do mato iam lá ?
- Iam o que sinhô, então eles eram bestas? Eles se escondiam em barrancos, faziam emboscadas para as tropas, espalhavam armadilhas onde elas caiam.
O preto velho que comandava o quilombo Marcos da Costa, mesmo doente de cama dava ordens: “vai catar o milho, vai cuidar dos porcos. Eles tinham de tudo, campos de gado, plantação de milho”. João conheceu muito crioulo que fugiu para esse quilombo “onde tinha um santo que veio da África e era o padroeiro do lugar, foi trazido pela fazendeira D. Inês, da Fazenda da Glória”. Cansados de verem tanta “malvadeza dos brancos” com seus irmãos de cor, a ponto de preferirem suicidar-se a continuarem escravos, a fuga era uma forma de se libertarem. Em Pacobaíba viu chegar muitos negros e muita negra mina natural de Angola. Uns destinados às fazendas, outros eram anunciados no “Jornal do Comércio” do Rio de Janeiro pelos agentes de escravos para serem vendidos em praça pública. Esse jornal publicava desde 1827 todo o movimento de navios com saída e chegada no porto. Compra, venda, aluguel e fuga de escravos, aconselhando que chamassem a polícia para capturá-lo e oferecendo recompensas a quem o levasse ao seu dono. João afirmava que escutou muita história de negros jogados no mar durante a travessia da África para o Brasil, “pelos comandantes que não queriam ser apanhados em flagrante fazendo tráfico de escravos. Abriam o porão e pronto, todos os escravos morriam afogados ou eram comidos pelos tubarões”.
Os velhos falavam que era assim, coisa de gente muito ruim
“Diz o preto reprodutor que nunca leu jornal, nem no Império nem agora, pois é analfabeto”
“Guaraciaba ainda se lembra que a fazenda de Pedro II era ali em Mauá, perto do lugar conhecido por Ipiranga dos Remédios. Naquele tempo era católico, mas gostava de macumba. Hoje é Batista, vai aos cultos sábados e domingos”.
Faz algum tempo, trabalhava no transporte de bananas com uma carroça e uma égua de sua propriedade, depois, passou a emprestar o animal ao compadre carroceiro para continuar o serviço, “por culpa de um reumatismo, principalmente no inverno, quando as dores aumentam”. Sobre os “feitores de escravos”, nem gostava de relembrar. Falava sobre a maldade e tortura contra os negros, crianças, mulheres e homens, amarrados no tronco e açoitados. Outros feridos a bala pelos senhores que experimentavam armas ou exercitavam a pontaria.
- O pior fazendeiro que conheci foi Antônio Nicolino, um homão de quase três metros de altura que comprava 100 escravos de três em três anos. Com três anos de trabalho a negrada estava arrebentada de tanta surra. Aí ele mandava comprar aguarrás, fazia uma fogueira e matava aqueles mais fracos.
- Eles pagavam os réis (impostos), e eram donos dos negros. Mas Deus é justo e Nicolino morreu pobrezinho e ninguém chorou (aí Guaraciaba fala sorrindo) por que todo mundo odiava ele.
Nesse tempo João era rapazinho e esses crimes foram testemunhados na Fazenda do Morro Seco, em Vassouras, propriedade de Nicolino.
- Tinha escravo que também era capataz e se juntava com os brancos para bater nos pretos, cercavam a negrada na mata e mandavam bala. Nhô não sabe, mais tinha fazendeiro que se desconfiasse que algum escravo roubou, matava, que era pru mode de não panhar costume.
O velho Guaraciaba está cansado de falar e pára para tomar o café, servido na casa dos compadres onde concedeu essa entrevista. Bebe de um só gole e estala a língua. Perguntado se nunca teve mulheres firmes com quem viveu, diz que sim, a Maria Olina, a Maria Madalena e a Olícia Maria do Carmo, esta com quem, teve uma filha agora com 33 anos, Laura, que mora em Nova Iguaçu, casada com um comerciante português.
“Os moradores de Mauá sabem de sua última mulher, Maria Olícia, que ele diz ser a mãe de Laura, morreu há três anos, com 50 anos. Aí o velho ficou mesmo só, dando suas caminhadas, mas ainda com vontade de caçar negas por aí”.
Acordava de manhãzinha com o cantar dos galos e dormia às oito da noite. Só sabia das horas orientando pelo sol. Não tinha relógio. Perguntado se gostaria de conhecer Angola, país onde nasceu, disse que “gostaria, mas só se fosse de navio”, pois “acho bonito o mar”. São quatro horas da tarde e o velho Guaraciaba quer ir embora pra casa, “hoje não foi almoçar com seus outros companheiros crentes, comeu arroz, feijão e peixe aqui mesmo na casa do compadre Jorge Carroceiro. Quer ir descansar”. Aceita uma carona. Está chovendo e a tarde vai antecipando a noite. Indica a estreita estrada de barro rasgada no mato, que João conhece bem, levando a um pequeno barraco de estuque com quintalzinho nos fundos, onde uma bananeira ao lado da porta tomba com o peso do cacho. Ao saltar do carro gemeu, ao botar a perna direita das oito picadas de cobras e pisar no chão com lama que agarra nos sapatos. Casebre acolhedor, mas que ele desejava melhor, pois nem porta firme tem, embora não se preocupe com ladrões, não há ali nada para roubar.
“Ficaram de me dar uma casa, mas acho que estão esperando eu morrer, diz brincando com um sorriso, pitando seu cachimbo de barro deixando um cheiro de fumo no ar. Na sua pureza ainda acredita em almas do outro mundo, rezando muito para elas não aparecerem em sua vida, principalmente quando vai a Piabetá a pé, sozinho pela estrada, chegando lá ao anoitecer”.
Dentro do barraco somente uma velha cama com colchão de palha forrada com trapos e algumas panelas sobre um armário. Seus bens mais preciosos cabiam dentro de uma lata vazia de leite em pó. Ali eram guardados a certidão de nascimento e um folheto evangélico, nada mais. “Quando quiser escrever uma carta (e pretende pedir uma casa ao Governo), recorrerá à dona Maria e ao seu Miguel, os compadres crentes”.
- O senhor sabe o nome atual do Presidente da República?
- Não sinhô.
- Quais o que o senhor se lembra?
- O Hermes da Fonseca, o Floriano Peixoto.
“Para ele o mundo era ali. O radio da vizinha irradia ao longe o jogo Fluminense e Olaria transmitido do Maracanã. Um avião quadrimotor passa baixo em direção ao Galeão. Vem de longe também música no rádio, ouvindo-se Jards Macalé cantando “Hei Cantareira” de Jackson do Pandeiro”.
Ali, naquele fim de mundo “Guaraciaba não tem luz, gás, telefone, campainha, porteiros, síndicos, cobradores, talvez nunca tenha sido recenseado pelo IBGE, os Correios não sabem seu endereço. Mas dorme com canto de grilos nos matos, olhando as estrelas nos céus das noites limpas sem poluição”. Na chegada da noite chuvosa, despediu-se dos repórteres desejando boa viagem e perguntando se sabiam seguir pela estrada até Magé. Agradecidos, eles prometeram voltar para atender o seu pedido:
- Trais uns agasaios pra mim, viu? Aqui faz muito frio.

* POSFÁCIO
Reconstruí essa História seguindo as pegadas do repórter Luiz Carlos de Souza e o fotógrafo U. Dettmar do Rio de Janeiro, que numa manhã chuvosa de sábado, dia 7 de junho de 1975, chegaram à Guia de Pacobaíba, Mauá, Distrito de Magé, em busca de João Antônio Guaraciaba, ex-reprodutor de escravos, para ouvirem seu depoimento.
Publicado na mesma época em forma de reportagem, na revista “Livro de Cabeceira do Homem” pela Editora Civilização Brasileira, e hoje perdida na poeira do tempo, procurei reescrevê-la resumindo o extenso texto, numa tentativa de resgatar das cinzas do esquecimento, um pedaço vivo e cruel da escravidão, ressuscitado da memória desse interessante personagem, e integrando-o na Historia da Baixada Fluminense.

Guilherme Peres (Pesquisador e diretor do IPAHB - Instituto de Pesquisas Aplicadas e Histórias da Baixada Fluminense)