Crônicas de conteúdo histórico-cultural sobre artistas, personalidades, políticos e acontecimentos em Duque de Caxias, RJ, projeto concebido pelos jornalistas Alberto Marques e Josué Cardoso.

sexta-feira, janeiro 06, 2006

FOLIAS DE REIS, A CULTURA POPULAR DESTRUÍDA A BALAS (Coluna 154)


Joacir Medeiros foi a primeira vítima da famosa "Chacina de Vigário Geral", na trágica noite que um bando de policiais chocou o mundo

►Na noite de 29 de agosto de 1993, cerca de 30 PMs do 9º Batalhão, que integravam um grupo de extermínio conhecido como "Cavalos Corredores", invadiram a favela de Vigário Geral para vingar a morte de quatro PMs no dia anterior, numa emboscada na Praça Catolé do Rocha, situada na parte "civilizada" daquele bairro suburbano da Leopoldina, onde os moradores ainda têm direito a água encanada, ruas asfaltadas e iluminadas, escolas, postos de saúde e transporte público. Esses direitos são negados pelo Poder Público a quem mora do outro lado do "Muro de Berlim", como é conhecido o muro da antiga Leopoldina, que separa os dois lados do bairro. O resultado da "invasão" foi o massacre de 21 moradores. A barbárie foi cometida por homens encapuzados, que atiraram sem piedade contra vítimas indefesas e inocentes.

Entre os 21 mortos pelos facínoras que, nas horas vagas são policiais militares, estava Joacir Medeiros, um pequeno comerciante de 69 anos, mestre da Folia de Reis Estrela Moderna do Rio de Janeiro, fundada por ele 41 anos antes da tragédia. Numa coordenada "ação de comando", os encapuzados se espalharam por pontos diferentes da favela. Na Praça Córsega, um grupo metralhou todos os trailers de ambulantes que vendiam cervejas e refrigerantes e fez a primeira vítima, Fábio Pinheiro Lau, de 17 anos. Depois, o bando executou Hélio de Souza Santos, de 38, metalúrgico desempregado. Minutos mais tarde, explodia uma bomba no Bar do Caroço, de propriedade do Sr. Joacir Medeiros.

O grupo encapuzado chegou ao bar dando um amistoso "boa noite". E todos responderam. Um dos encapuzados quis saber quem trabalhava. Todos trabalhavam! O grupo fez menção de ir embora. De costas, um dos encapuzados jogou uma bomba de efeito moral. A seguir, começaram os tiros. Joacir Medeiros, o dono da birosca, foi o primeiro a tombar. O enfermeiro Guaracy Rodrigues, de 33 anos, caiu no salão. No balcão, foi morto o serralheiro José dos Santos, de 47. No banheiro, tombou Paulo Roberto Ferreira, 44, motorista. No depósito, dois outros inocentes assassinados: o ferroviário Adalberto de Souza, 40, e o metalúrgico Cláudio Feliciano, 28. O último morreu no corredor, sem saída: Paulo César Soares, 35. A ação, que chocou o mundo como a "Chacina de Vigário Geral", manchou com o sangue das 21 vítimas a imagem da "Cidade Maravilhosa" e chamou a atenção mundial para um problema que aflige a população brasileira até os dias de hoje: a violência!

O Sr. Joacir Medeiros, o dono do Bar do Caroço e uma das primeiras vítimas, fundou a folia em 1952, na cidade de Mimoso do Sul, com o nome de Folia de Reis Estrela da Guia Em 1960, o comerciante se transferiu com toda a sua família para a cidade do Rio de Janeiro, onde decidiu rebatizar a folia com o nome que carregou até aquele fatídico dia 29 de agosto de 1993: "Folia de Reis Estrela Moderna do Rio de Janeiro".

Desde que foi trazida para o Brasil pelos portugueses, a folia sempre foi colocada nas ruas por devoção aos Três Reis Magos do Oriente. Uma tradição cultural dos árabes, que invadiram Portugal e Espanha no Século XVII, a Folia sai em peregrinação na noite do dia 24 de dezembro, indo de casa em casa de cada vila, recontando a saga dos Reis Magos na visitação ao Menino Jesus. A Jornada, como é conhecida a apresentação anual das Folias, termina no dia 6 de janeiro, o Dia de Reis da tradição católica. A folia fundada por Mestre Joacir saiu, pela última vez, para uma apresentação especial em Copacabana, no dia 22 de agosto daquele fático 1993, em homenagem ao Dia Nacional do Folclore, num evento que contou com o apoio da Federação de Reisado do Estado do Rio de Janeiro. Sete dias depois, a barbárie decretaria o fim do grupo, com o assassinato brutal do Sr. Joacir Medeiros, que, como as outras vítimas do bando de policiais, não teve nenhuma chance de defesa, ao contrário dos seus assassinos, até hoje impunes, mais de 12 anos depois da chacina.

A ação dos bandidos, que se abrigavam sob o secular uniforme da nossa Polícia Militar, fora mais longe do que havia sido planejada por seus mentores. Além de pôr fim à vida de 21 pessoas humildes - obrigadas a morar na favela por falta de uma política pública de habitação, de urbanização, de assistência social e de educação - a truculência policial também decretou, sem julgamento, o fim de um dos mais significativos grupos de Folia de Reis do Estado do Rio. A cultura popular brasileira perdia, de forma brutal, um dos seus representantes empenhados na sua preservação.

Ao contrário do Carnaval - com o indefectível desfile nos camarotes VIPS do Sambódromo de conhecidos marginais travestidos de mecenas da "cultura popular", merecendo até a edificação de um "Sambódromo", agora seguido por uma "Cidade do Samba", esta ao custo de mais de R$ 100 milhões de uma Prefeitura que não tem dinheiro para pagar o fornecimento de remédios e a alimentação dos pacientes internados nos hospitais púbicos - as "Folias de Reis" não recebem um tostão do Poder Público e são mantidas apenas por doações do cidadão comum e pela teimosia dos seus Mestres.

Talvez por isso mesmo, o trágico fim da Folia de Reis Estrela Moderna do Rio de Janeiro - como parte integrante da genuína cultura popular - nunca chamou a atenção da "grande mídia". A verdade é que poucos brasileiros ficaram sabendo que o assassinato do Sr. Joacir Medeiros também significou a morte do tradicional grupo de Folia de Reis, uma vez que nenhum órgão de imprensa registrou esse detalhe histórico. Infelizmente, em pleno Século XXI, na era da informática e da comunicação instantânea, se a Imprensa se omite ou desconhece o assunto, ele se torna desimportante.

(Publicado em "O MUNICIPAL", Edição Nº 9055, de 6 a 13-01-2006, pg. 5.
CONCEPÇÃO: ALBERTO MARQUES E JOSUÉ CARDOSO. FOTO: ACERVO DA FEDERAÇÃO DE REISADO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (FRERJA)